Uma italiana explica em forma de poema o que é o «bunga-bunga». Um DJ finlandês sampla a voz de uma criança que confessa ao público que «gostava tanto de viver na China, mas os pais não deixam». O organizador da primeira edição ao ar livre do "Poetry Slam Lisboa" garante que «o mundo está ao contrário» enquanto faz o pino. Flashes de um final de tarde e de uma noite no Jardim da Estrela, em que a poesia se disse e «performou» em voz alta, numa esplanada. Com cisnes e folhas caídas ao lado.
É final de tarde no Jardim da Estrela. Duas adolescentes serpenteiam o parque, de patins, entre dragoeiros e araucárias, bem perto dos bandos de patos e cisnes que se passeiam pelo lago. Uma mãe auxilia uma criança a dar os primeiros passos. E um fontanário completa a visão possível do locus amoenus - expressão latina para um lugar ameno, inspiração de vários poetas bucólicos desde a Antiguidade Clássica. Para trás das portas deste jardim público ficam o caos do tráfego automóvel e o odor a combustível queimado da cidade. O caminho conduz agora até um slammer, um dos concorrentes que «performam» um texto da sua autoria num torneio de «slam poetry» (e no primeiro dia foram sete) .
Por volta das 20h, junto a um quiosque convertido em restaurante com esplanada, começam a ressoar, sobrepostas, várias línguas e linguagens sonoras. É aqui que entram os organizadores das sessões da "Poetry Slam Lisboa", um evento itinerante, nascido em Setembro do ano passado, que tem espalhado, a par das congéneres "Slam Poetry Nights", o conceito de «torneio de poesia» pela capital. A portuguesa Ana Reis e o italiano Mick Mengucci comprometeram-se com os gerentes do Quiosque do Jardim da Estrela a animar a esplanada até à meia-noite, no âmbito do programa «28 para a Estrela - Ninguém Paga Bilhete».
Se a «slam poetry» - primeiro nos Estados Unidos nos anos 1980 e depois nas capitais europeias - teve o condão de retirar a poesia dos livros e dos cadernos para um palco e fazer dela matéria para ser expressa em voz alta, a organização da "Poetry Slam Lisboa" experimentou, numa acção inédita em Portugal, retirar esta competição de poetas das quatro paredes de um bar e fixá-lo num espaço público a céu aberto. Os poetas têm então três minutos para mostrarem o que valem perante um júri constituído por membros escolhidos informalmente entre o público.
«A poesia devia ser colocada em todas as praças, para comunicar e partilhar, como acontece no Hyde Park [em Londres], onde há um palco para quem o queira fazer. Este é o ambiente ideal para divulgar textos, ideias e pessoas», afirma Mick Mengucci, mestre-de-cerimónias (MC) e co-organizador desta sessão, que na noite de quarta-feira também improvisou rimas, literalmente de pernas para o ar, sobre um mantra de música electrónica patrocinado por Jari Marjamäki, um produtor finlandês radicado em Portugal. Mick acrescenta que, apesar do ambiente de esplanada e dos holofotes, não se perdeu a intimidade que povoa as sessões «dentro de portas».
A «poesia surrealista» de miúdos para graúdos
A organização admite que na noite da iniciativa o conceito de «slam poetry» - ou mesmo o de poesia sem competição e regras à mistura - chegou a um público mais vasto, incluindo crianças e idosos, pessoas que não se deslocariam a um bar depois da meia-noite para ouvir um poema que fosse.
Aliás, Vicente e o irmão, duas crianças que acompanhavam os pais num passeio pelo jardim, foram os protagonistas do «open mic» («microfone aberto»), um momento extra-competição, para quem quisesse apenas partilhar palavras, suas ou de outros. Da boca dos miúdos saiu «poesia surrealista» - como definiu Mengucci - alusiva a «uma galinha verde a ver o sol», a desejos interditos de ir viver para a China ou a um condutor de um autocarro que atropelou uma galinha só para a comer.
Foi, por sua vez, inspirado nas frases deste duas crianças - que se apoderaram do microfone várias vezes ao longo do serão - e de outras palavras partilhadas e «performadas» no Jardim da Estrela ao longo da noite passada, que Yaw Tembe, um sósia de 22 anos de Bob Marley, vindo directamente de Almada para se estrear numa sessão de «slam poetry», construiu, recorrendo à espontaneidade e à memória, o poema «Plágio», uma síntese das ideias e sonoridades que fixou das intervenções dos seus parceiros de microfone que lhe valeu a vitória na final.
O segundo lugar da edição fora de portas da "Poetry Slam Lisboa" foi conquistado pela italiana Paola d'Agostino, 36 anos. Esta escritora e professora no Instituto Italiano de Cultura trouxe à baila um poema em torno da expressão portuguesa «pouca-terra» e um outro sobre a expressão italiana «bunga-bunga». Sem tirar, nem pôr, foi assim que explicou a modalidade a um arrumador de carros recorrendo à poesia: «Olhe, para lhe dar uma ideia: É um ritual erótico pós-ceia, que em Itália virou prática política e já esgotou os argumentos da ética».
Uma habitué nestas andanças, a poetisa italiana compara esta experiência ao ar livre - uma novidade para si - com as várias participações em torneios de poesia entre paredes. «No caso de um jardim, ganha-se a companhia das árvores, um céu a mais, uma cumplicidade com a natureza. No início pode incomodar a exposição excessiva, a ideia de haver transeuntes, ouvintes casuais», mas, conclui, que «afinal é estimulante convencer as pessoas de que a poesia vale a pena, de que vale a pena ficar, abrir os poros da pele e estar disponíveis para a escuta».
Já Tatiana Paoli, 33 anos, outra italiana a residir e a trabalhar em Portugal, que veio acompanhar um amigo estreante como slammer esta noite - Bruno Dias, vindo da Charneca da Caparica, autor das perguntas retóricas como «e se fosses água/ quantas gotas juntarias?/ que montes rasgavas?» -, admite que a sensação de competição, inerente aos torneios de «slam poetry», lhe passou quase despercebida. Ao evento de poesia a céu aberto associou as ideias de «liberdade, comunhão e partilha de pensamentos e energias, versatilidade dos artistas e dos géneros de poesia e o abrir dos olhos para a multiculturalidade de Lisboa».
Via Público