Os quase-cristais, materiais cujos átomos formam padrões geométricos regulares que nunca se repetem, eram considerados contrários às leis da Natureza. Shechtman provou que existem.
Na manhã de 8 de Abril de 1982, quando Shechtman, que na altura trabalhava no National Institute of Standards and Technology (NIST), nos EUA, olhou ao microscópio electrónico para a mistura de alumínio e manganésio, material cuja estrutura atómica estava a estudar, pensou (em hebraico): “Esta criatura não pode existir”.
A imagem que tinha obtido “mostrava uma série de círculos concêntricos, cada um composto por dez pontinhos luminosos a igual distância uns dos outros”, explica o Comité Nobel em comunicado. “Shechtman contou e tornou a contar os pontinhos. Círculos com quatro ou seis pontinhos teriam feito sentido, mas não dez, de maneira nenhuma."
A imagem que Shechtman tinha obtido mostrava que, dentro do material, os átomos apresentavam uma estrutura cristalina, o que em si não tinha nada de especial. Mas aqueles dez pontinhos dispostos em círculos correspondiam a uma estrutura cristalina com uma “simetria de rotação de ordem 10” – e isso era totalmente contranatura. Uma tal estrutura nem sequer constava das Tabelas Internacionais de Cristalografia, a referência mundial na matéria. “Naquela altura”, refere o comunicado, a ciência estipulava liminarmente que um tal padrão cristalino era impossível.”
Rejeição violenta
Nos cristais, a disposição dos átomos forma padrões geométricos regulares e repetitivos (o elemento de base pode ser cúbico ou hexagonal, por exemplo). Estes padrões dependem da composição química do cristal e conforme os casos, apresentam certas simetrias de rotação. Existem cristais com simetrias de ordem 3, 4 ou 6, em que cada átomo está rodeado de 3, 4 ou 6 átomos, respectivamente, todos a igual distância uns dos outros.
A ordem da simetria é revelada quando a imagem dos átomos destes cristais (os pontinhos luminosos) é rodada de forma a ficar perfeitamente sobreposta à imagem inicial: se for preciso uma rotação de 120 graus isso assinala uma simetria de ordem 3, se bastar uma rotação de 90 graus, a simetria é de ordem quatro e se for de apenas 60 graus indica uma simetria de ordem 6.
Os cristais com simetrias de rotação de ordem 5, 7 ou 10 eram considerados impossíveis porque isso tornaria desiguais as distâncias entre os átomos, gerando um padrão regular mas não repetitivo – e violando assim uma regra de base da cristalografia – a de que os padrões cristalinos se repetem ao infinito iguais a si próprios.
E no entanto, a imagem que Shechtman tinha obtido nessa manhã de Abril 1982 apresentava uma simetria de ordem 10: bastava rodá-la 36 graus (um décimo de uma volta completa de 360 graus), para a imagem rodada se sobrepor perfeitamente à imagem inicial. No seu caderno, o cientista escreveu: ‘Ordem 10???’” Estava perplexo.
Para mais, quando Shechtman analisou com mais pormenor a estrutura geométrica do cristal que tinha entre mãos, descobriu que, na realidade, ela apresentava uma simetria de ordem 5 – algo igualmente impossível.
Depois de ter excluído que se pudesse tratar de um erro experimental, Shechtman falou aos seus colegas da sua descoberta. A reacção foi violenta: Shechtman foi ridicularizado, o seu chefe mandou-o ler melhor os manuais de cristalografia e até o quis expulsar do laboratório.
Mas Shechtman, convencido de que tinha razão, não desistiu e, nos meses que se seguiram, vários especialistas também perceberam que a sua descoberta iria mudar para sempre a visão científica dos sólidos cristalinos: o israelita Ilan Blech, ex-colega do Technion, onde Shechtman tinha estudado, o norte-americano John Cahn, físico de renome que o tinha convidado a trabalhar no NIST e o cristalógrafo francês Denis Gratias. Juntos publicavam, em Novembro de 1984, na revista Physical Review Letters, um artigo “que teve o efeito de uma bomba”, lê-se ainda no comunicado Nobel, porque “punha em causa uma verdade fundamental [da cristalografia]: que todos os cristais são feitos de padrões periódicos, repetitivos.”A partir daí, os cristalógrafos começaram literalmente a tirar das suas gavetas imagens semelhantes às de Shechtman que tinham descartado por as terem interpretado como sendo o resultado de erros laboratoriais de fabrico dos seus materiais. Simetrias de ordem 8 e 12 foram assim ser reconhecidas à luz dos resultados de Shechtman.
Mosaicos árabes e matemática
Shechtman continuava contudo sem saber exactamente como os átomos estavam dispostos no material que tinha analisado. Essa parte do enigma seria resolvida em paralelo com a ajuda da matemática.
Em meados dos anos 1970, o célebre matemático britânico Roger Penrose tinha criado um mosaico feito a partir de dois losangos de dimensões diferentes. Estes mosaicos não eram periódicos e o seus padrões não eram repetitivos. Diga-se de passagem que o mesmo tipo de padrões seria a seguir descoberto nos maravilhosos azulejos do Alhambra, em Granada, e em monumentos do século XIII no Irão, sugerindo que os matemáticos ocidentais do século XX não foram os primeiros a inventá-los...
Seja como for, sem nada saber do trabalho de Shechtman, o cristalógrafo britânico Alan MacKay teve por seu lado a ideia de utilizar o mosaico de Penrose para ver se, no mundo real, os átomos poderiam criar padrões do mesmo tipo. Basicamente, pegou numa imagem do mosaico de Penrose e furou buraquinhos nas intersecções dos losangos para representar os átomos. E quando projectou luz no seu modelo para obter aquilo que os especialistas chamam uma “imagem de difracção”, descobriu um padrão composto de ... círculos concêntricos com dez pontinhos cada!
Quem fez a ponte entre os resultados de Shechtman e os de MacKay foram os físicos norte-americanos Paul Steinhardt e Dov Levine. Perceberam que o modelo de MacKay existia no mundo real – muito precisamente, no laboratório de Shechtman – e publicaram, na noite de Natal de 1984, um artigo que fazia a síntese das duas descobertas e dava aos novos cristais o nome de “quase-cristais”.
Via Público