Lisboa não é só portuguesa. É também indiana, africana, sul-americana. O primeiro concerto da Orquestra Todos é esta noite, no Intendente.
De Portugal, tinha apenas uma cidade no nome. Max Lisboa chegou do Brasil há sete anos. Nessa altura tinha mulher, queria fazer dinheiro para a família. Veio para trabalhar, acabou a tocar na rua, para os turistas, que lhe vão dando o bastante. Max também compõe, mas cantar originais na rua "não compensa". O melhor é cantar "aquilo de que as pessoas gostam".
Um dia, Francesco Valente, um músico italiano a viver em Portugal que procurava outros músicos para uma orquestra multicultural que estava a ser criada em Lisboa, passou por ele, gostou e fez-lhe a proposta. De repente, Max estava numa sala no Intendente, frente a Mario Tronco, maestro da Orquestra Todos, e a Pino Pecroelli, director musical.
Como uma orquestra não é a rua e nesta, em particular, é suposto ser a identidade dos músicos a construí-la, Mario e Pino usaram duas composições de Max, que depois foram trabalhadas. Maria bonita e lampião e outra que "não tem nome ainda mas pode ser Grito da terra".
Já desde Junho, altura dos primeiros ensaios da Orquestra Todos, que as janelas do Sport Clube Intendente (SCI) deitam música para a rua, a que o Largo do Intendente Pina Manique, em Lisboa, já se habituou.
Hoje, às 21h, os músicos saem do edifício para o primeiro concerto da orquestra, num palco montado no largo em que têm ensaiado para o Todos - Caminhada de Culturas, um festival de culturas que propõe uma viagem pelo mundo sem sair da Mouraria e que termina esta noite. No mesmo largo onde a Orchestra di Piazza Vittorio, também dirigida por Mario Tronco, deu um concerto na edição de 2009 do Todos.
Mario costuma contar que quando olhou para o público viu que era igual aos seus músicos e que, por isso, teve vontade de criar uma nova orquestra de culturas no Largo do Intendente, tal como fizera em Itália em 2002, numa espécie de protesto contra a lei "Bossi-Fini", que criminalizou a imigração ilegal.
"Uma liberdade absoluta"
O SCI é um lugar num edifício que parece devoluto onde os sócios se encontram para jogar cartas ou bilhar enquanto bebem cervejas, ou apenas para uma conversa e um cigarro à janela, contemplando a calma do largo. Foi aí que se fez a orquestra. A maioria dos seus 14 músicos são profissionais, como Susana Travassos, uma portuguesa numa orquestra do mundo que se junta em Lisboa, que tem usado a música como forma de intercâmbio entre as culturas portuguesa e brasileira e a quem este projecto "veio abrir novos horizontes", como ela diz.
"Para além da parte musical, que é muito interessante, consistente, bonita, este projecto vai muito para além disso", acredita. "Um dos músicos nem fala português, é incrível ver as barreiras que a música consegue quebrar."
Susana está a falar de Ali Regep, um romeno de origem turca. Anda sempre pelas ruas de Lisboa - do Chiado à Mouraria, passando pela Baixa, não é difícil encontrá-lo. A partir de uma gravação do que canta pelas ruas, compuseram uma música, que Ali cantará esta noite.
No primeiro disco que Susana gravou, Oi Elis, uma homenagem à brasileira Elis Regina, decidiu recriar o universo da cantora. "Mas não vou para lá [Brasil] cantar com sotaque do Brasil." O que faz na Todos não será muito diferente. Pediram-lhe, por exemplo, que cantasse uma música napolitana "à portuguesa".
Esta orquestra é isto, uma amálgama de toda a diversidade possível em Lisboa. "Temos músicos muito diferentes, uma liberdade absoluta, que aproveitámos para fazer um repertório muito diverso, que pode parecer não ter ligação, mas que é o som desta cidade", explica o maestro. "É o som da nova Lisboa: indiana, africana, sul-americana."
Bollywood no Intendente
O português de Rubi Machado tem sotaque de Lisboa. As suas origens estão em Goa, mas nasceu em Moçambique. Tem muito de português - conta que os pais "foram sempre atrás da bandeira". Assim vieram dar a Portugal, estava Rubi "a fazer 14 anos". Já se passaram 32.Trabalha numa loja de bijutarias do Martim Moniz que o marido comprou há uns anos - a mesma onde se conheceram eram ainda empregados. E onde Francesco Valente, que durante o processo de formação da orquestra fez a ponte entre Mario e Pino e os músicos de Lisboa, entrou à procura da voz indiana de que lhe tinham falado.
"Nunca tive aulas de música. Comecei a cantar", diz Rubi. Desde os tempos de Lourenço Marques que a vão convidando para cantar em casamentos indianos. Música indiana. Rubi nunca viveu na Índia, sempre falou português em casa e fora dela, mas fala hindi e outras duas línguas regionais indianas.
No ano passado, foi convidada para cantar ao vivo os temas do último disco de António Chainho, Lisgoa. A sua voz "é uma dádiva", acredita. Mas nem por isso vive da música.
No concerto desta noite, a voz de Rubi, sari vermelho, está em dois antigos êxitos de Bollywood, modificados ao jeito desta orquestra, que, explica Giacomo Scalisi, programador convidado do Todos e tutor deste projecto, está sempre em movimento. "Os meses até Dezembro serão de consolidação."
A orquestra nasceu do Todos, mas não se esgota nesta noite. Há concertos agendados para o Teatro São Luiz e para a Gulbenkian, que financiou este projecto colectivo.
Desde Junho, houve, no total, um mês de ensaios. "Ninguém estava à espera deste resultado", confessa Giacomo Scalisi. O concerto mudou das 17h, horário que vem na programação, para as 21h. "A ideia inicial era fazer uma apresentação da orquestra com quatro ou cinco peças musicais. Mas a dado momento tínhamos um alinhamento de 14, que dava para um verdadeiro concerto."
Via Público