Sexta-feira, 30.09.11
A herança das freiras doceiras: Pastel de Tentúgal
Uma massa mais fina que uma folha de papel, mulheres que a esticam até ela quase rasgar, um convento cheio de histórias. O que as freiras deixaram a Tentúgal foi mais do que um bolo, foi uma forma de sobrevivência. É com ele que começamos uma série sobre os 21 candidatos a maravilhas da gastronomia portuguesa.
A sala parece um pequeno ginásio. O chão está coberto com um colchão fino e um pano branco, imaculado. Gracinda faz lembrar uma professora de judo, movendo-se pelo espaço com passos ao mesmo tempo leves e firmes. Atira para o centro um grande pedaço de massa, que cai pesadamente. Depois, com gestos decididos, a mulher vestida de branco começa a dar puxões na massa pega numa ponta e estica-a, como se estivesse a fazer uma cama; depois outra ponta; e outra; e outra. A massa faz um balão no ar e vem assentar levemente sobre o pano branco.Se alguma vez se interrogaram como é que é possível os pastéis de Tentúgal terem uma massa tão fina e estaladiça, a resposta está aqui. Durante algum tempo, Gracinda continua o seu ritual, e se, de tão esticada, a massa ameaça abrir um buraco, ela atira-lhe imediatamente com um dos panos que tem ao ombro para travar o rasgão. No final, o resultado terá 0,05 milímetros será mais fino que uma folha de papel vegetal.Temos alguma dificuldade em imaginar como o fariam as freiras no convento de Tentúgal. Teriam também salas enormes, panos no chão, e andariam assim, em coreografias de judocas? Tanto não sabemos. Mas Olga Cavaleiro, da Confraria da Doçaria Conventual de Tentúgal, conhece muito desta história do doce que está entre os 21 finalistas da eleição para as sete maravilhas da gastronomia portuguesa, cujos resultados serão anunciados no início de Setembro. "O pastel nasceu há cerca de quatro séculos, aqui, no Convento da Nossa Senhora da Natividade, das freiras carmelitas. Era usado para dar às crianças doentes. Nesse tempo, o açúcar funcionava como medicamento em situações de carência alimentar."Os registos mostram que, sobretudo a partir do século XVII, as freiras encomendam grandes quantidades de farinha. E no inventário da cozinha aparece também a referência a dois alguidares para lavar os pés seria, talvez, porque já então andavam descalças sobre a estopa onde esticavam a massa.Mas, em 1834, com a extinção da ordens religiosas, o pastel torna-se para as freiras uma forma de sobrevivência. De repente, foi proibida a entrada de noviças e todas as propriedades e rendas reverteram para o Estado. "Para colmatarem a falta de dinheiro, elas passaram a vender pastéis numa das rodas do convento (havia outra para a troca de mercearias, e a das crianças abandonadas). Nessa altura, tinham formato de palito e não tinham ainda amêndoa no recheio".Conta-se e a literatura confirma que os pastéis de Tentúgal eram já procurados por quem vinha de Coimbra. Entre eles, claro, muitos poetas e estudantes. Na sua Carta a Manuel, António Nobre (1867-1900) relata a esperança de encontrar um bilhetinho da amada escondido entre as folhas finas do pastel."Tentugal toda a rir de cazas brancas!/ A linda aldeia! Venho cá todos os meses/ E contrariado vou de todas essas vezes./ Venho ao convento vizitar a linda freira/ Nunca lhe fallo: talvez, hoje, a vez primeira.../ Vou lá comprar um pastellinho, que eu bem sei/ Que ele trará dentro um bilhete, isto sonhei:/ Assim o pastellinho, ó ventura sonhada!/ Tem de recheio o coração da minha amada./ Abro o envelope ideal. Vamos a ver... Traz? Não!/ Regresso a Coimbra só com o meu coração".E há quem conte que a massa era tão fina precisamente para que os tão esperados bilhetinhos pudessem ser escondidos entre as folhas e lidos à transparência delas.

O poder das mulheres

Via Público


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Quinta-feira, 29.09.11

 

Pensavam que comer um leitão da Bairrada era fácil? Há muito a aprender para fazer as coisas da forma correcta. Mas na região onde se assam e servem cerca de três mil leitões por dia, há quem nos ensine todos os truques. É um curso rápido e saímos especialistas
Como em tudo, também no leitão da Bairrada existem os puristas. E, se queremos fazer as coisas bem feitas, é com eles que devemos aprender. Atenção, portanto, porque Victor Oliveira, da Confraria do Leitão da Bairrada, e Joaquim Almeida, da Confraria das Almas Santas da Areosa e do Leitão, estão a explicar-nos como se deve comer correctamente o leitão, um dos 21 finalistas do concurso das maravilhas da gastronomia, que em Setembro anunciará os sete vencedores.Os meus interlocutores aos quais se juntou entretanto o presidente da Câmara da Mealhada, Carlos Cabral erguem as vozes num coro bem humorado para que uma coisa fique claríssima: há o leitão da Bairrada e o leitão à Bairrada. E nessa ausência da letra está tudo aquilo que importa. Está, no fundo, esta evidência: existe um original e existem as imitações.E estamos aqui para eles nos explicarem o que faz um original. A Churrasqueira Rocha, na Mealhada, casa fundada em 1978, tem matadouro próprio, nas traseiras. É aí que entramos, para Joaquim Luís, responsável do restaurante, nos explicar o processo. Está tudo impecavelmente limpo. Os leitões para esse dia foram mortos há horas, pelas sete da manhã, e aquilo a que assistimos é (felizmente) à descrição do processo mas sem animais.Avançamos para uma primeira zona, dividida em espaços menores, com muros baixos, que é para onde os leitões entram. Numa das paredes, uma placa indica "leitões suspeitos", o que dá ao local um certo clima de sala de interrogatórios. Mas trata-se apenas de um dos vários cuidados a ter para garantir a qualidade do que chega à mesa. Se há suspeita de que alguma coisa não está bem com um dos bichos, este é posto à parte e, na realidade, poupado à sorte dos outros, que seguem para a fase seguinte.É difícil dizer quantos animais são mortos por dia, explica Joaquim Luís, porque há grandes diferenças. "Hoje [uma quarta-feira] serão uns 15, mas no sábado já poderão ser 40." Se há uns anos muitos animais vinham de pequenos criadores da região, hoje, com as rigorosas regras de higiene e segurança impostas, muitos destes criadores desapareceram, e os leitões vêm de pecuárias com alguma dimensão em várias zonas do país.

"Não pode ser aquecido"

E aqui chegam pequeninos têm mais ou menos seis semanas de vida, e não deverão pesar mais do que 11 quilos, o que significa que depois de cozinhados terão quatro quilos, quatro quilos e meio (as raças mais usadas são a Bísara e a Malhado de Alcobaça, mas também a Bairradinus, que resulta de um cruzamento de Bísara com a Camborough). "É conveniente que o leitão esteja dois ou três dias a desmamar, tem que se lhe dar farinhas, milho, couve, que é o que lhe vai tirar o sabor do leite", explica Victor Oliveira, reconhecendo, contudo, que nem sempre isso é possível.Uma das grandes preocupações de Joaquim Luís é a gestão do número de animais a matar por dia. "A carcaça não pode estar mais do que 24 horas no frio, porque perde qualidades." E o número de clientes pode ser difícil de prever.O objectivo é que, quando o cliente se senta à mesa, a carne lhe chegue o mais possível próximo do momento em que saiu do forno. "O leitão só se deve comer de duas formas: quente ou frio. Não pode ser aquecido", avisa Victor Oliveira. "Tem que estar muito crocante por fora e a carne tem que ser dura e gordurosa", acrescenta Joaquim Almeida. E, no entanto, alerta ainda Victor, "não pode estar assado de mais, senão a carne torna-se mole".E os especialistas lançam-se a recordar um ritual que havia nas casas senhoriais: "Antes de o leitão ser servido, o assador vinha com ele para o apresentar à pessoa mais importante da casa que, com um golpe de um prato de porcelana, separava a cabeça do corpo. Se a cabeça se separasse bem, dizia: 'Está bem assado, pode servir.'"Mas isto são rituais antigos, que dificilmente se poderiam manter na Mealhada, onde, segundo o presidente da câmara, já existem hoje 54 restaurantes a servir leitão, isto sem contar com os assadores, que não funcionam como restaurantes (em toda a região da Bairrada, calcula-se que existam mais de 200 restaurantes e mais de 100 assadores, a servir três mil leitões por dia, podendo um leitão alimentar 12 pessoas). Um fenómeno que começou por volta de 1910, com dois restauradores "o avô do Pedro [hoje o restaurante Pedro dos Leitões], que era o Álvaro Pedro, e o António Marcelino", este último especializado nas sandes de leitão. "Os meus avós já se lembram de comer leitão quando ainda nem era à beira da estrada, quase nem automóveis existiam", conta Carlos Cabral, rindo.O negócio foi crescendo, mas no início dos anos 90 houve um susto. "Pensou-se aqui que quando abrissem a auto-estrada [A1] os restaurantes estariam desgraçados, porque as pessoas deixariam de vir pela Estada Nacional", recorda o presidente da câmara. "Mas verificou-se o contrário: a Mealhada deixou de estar a três horas do Porto para passar a estar a 45 minutos e Lisboa deixou de estar a um dia de distância para passar a estar a duas horas. Muita gente passou a vir aqui de propósito para comer o leitão."E continua a ser assim. Dos dois lados da estrada, restaurantes anunciam o famoso leitão e não é só na Mealhada, mas em toda a região da Bairrada. Está-se, aliás, já a apostar numa promoção conjunta dos produtos da região o leitão e o vinho. A antiga estação da Curia, onde antes chegavam os visitantes para uma temporada nas termas, foi recuperada (o projecto original é do arquitecto Cottinelli Telmo, com painéis de azulejos de Jorge Barradas) e transformada na sala de visitas da Rota da Bairrada e mesmo as termas promovem, a par dos tratamentos com água, provas de vinhos e visitas a adegas.

Batatas fritas ou cozidas?

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Quarta-feira, 28.09.11

A história do polvo passa pela baleia: Polvo dos Açores

 

O polvo assado não é o prato mais célebre das ilhas dos Açores, mas ficámos a saber que tem história: começou a ser apanhado, porque andava a rondar os mariscos que se alimentavam dos desperdícios das baleias. Num arquipélago de vários ciclos económicos, há também um ciclo entre as vidas do polvo e da baleia.

O polvo chegou à mesa majestoso, como um rei-sol com os grossos raios dispostos em volta, e as fiéis batatas a rodeá-lo em silenciosa admiração. Mas, por muito digno que fosse candidato dos Açores ao concurso das maravilhas da gastronomia portuguesa, numa lista de 21 finalistas da qual sairão em Setembro os sete vencedores, vinha sem história. Como é que este prato relativamente desconhecido chegou à final era algo que estávamos curiosos por perceber.  

A história do polvo, essa, haveria de entrar pela porta do restaurante Mariserra, na localidade de São Roque, ilha de São Miguel, exibindo um também majestoso bigode branco. Expliquemos: o nosso anfitrião neste jantar é António Cavaco, confrade-mor da Confraria dos Gastrónomos dos Açores, nascida em 2002, e responsável pela candidatura de várias especialidades açorianas, entre as quais o polvo, ao concurso. E é este homem, de bigode de pontas retorcidas, que nos vai contar toda a história do polvo.

Mas antes dessa viagem que nos levará aos Açores da pesca da baleia e aos ciclos económicos das ilhas, da pimenta malagueta à laranja, passando pelo vinho, é necessário um esclarecimento: o polvo não era a grande aposta da confraria. E o melhor é contar essa história já para nos podermos depois concentrar no polvo, que, na realidade, não tem culpa nenhuma.

"Das mais de 20 candidaturas apresentadas pelos Açores, sete passaram para a fase de pré-selecção", conta António Cavaco. Lá estavam o cozido das Furnas, a carne de alcatra, a sopa do Espírito Santo, o ananás, o queijo de São Jorge. Mas o júri de personalidades que escolheu as 21 finalistas acabou por eleger o polvo. "Chocou-me que não tivessem passado o cavaco [marisco da família da lagosta, que nos Açores chega a atingir os três quilos] e as cracas, que não existem em mais lado nenhum e que, juntamente com a carne, eram a nossa grande aposta. O cozido das Furnas, por exemplo, tem a particularidade da confecção [nas caldeiras naturais da lagoa das Furnas] que o torna único", confessa o confrade.

Bom, mas foi o polvo o eleito, a confraria está agora 100 por cento ao lado do polvo e Cavaco vai explicar porque é que este prato tem tudo a ver com os Açores. "Somos um país de polvo. Encontramos polvo de todas as formas, em arroz, filetes, braseado. Mas ainda não descobri no continente um prato de polvo no forno. E não é em todas as ilhas dos Açores que se come polvo no forno, a versão do polvo guisado é muito mais comum", diz.

Com meia lagosta comida...

No fundo tem tudo a ver com... a baleia. "Os Açores foram vivendo por ciclos económicos, o da baleia foi um dos últimos e constituía praticamente toda a economia das ilhas." Conta-se que a primeira referência à pesca da baleia nos Açores é do século XVI, quando os pescadores terão encontrado uma morta ao largo da Ilha de Santa Maria, mas foi só a partir da segunda metade do século XVIII que se começou a capturar baleias de forma mais sistemática.

"Exportava-se a carne, o óleo, e havia toda uma actividade piscatória junto às zonas ribeirinhas. A baleia era esquartejada no cais e os ossos, o sangue, as vísceras, ia tudo para o mar e isso levava à formação de colónias de vida marítima nas zonas junto às fábricas." E um dos animais que andava a rondar por ali era o polvo, que se alimenta de outros moluscos e de marisco, o que explica que seja mais ou menos gostoso dependendo das zonas onde vive.

Era uma pesca fácil. "Chamavam-lhe a pesca das necessidades familiares, não requeria grandes artefactos." Podia ser tão simples como isto (António Cavaco garante que fez ele próprio a experiência): "Arranja-se um cordel, um anzol e um pano branco. Na maré baixa, quando os polvos estão escondidos no meio das rochas, atira-se tudo e o polvo fica agarrado ao pano. E às vezes até vem um cavaco ou uma lagosta agarrado ao polvo." Noutras alturas os polvos apareciam nas gaiolas usadas para apanhar marisco "o polvo entrava e já vinha com meia lagosta comida". O que não resulta são os potes de barro, porque o mar dos Açores lança-os contra as rochas e quebra-os.

Mas a pesca da baleia acabou (foi proibida a partir de 1987) e a vida dos polvos mudou. Já o tínhamos percebido quando, nessa manhã, passámos pelo mercado de Ponta Delgada. Havia um único polvo nas bancadas de pedra dos peixeiros, que, não compreendendo muito bem o nosso interesse e insistência em fotografar o animal, lá foram explicando que era sobretudo aos fins-de-semana que se vendiam polvos.

Os ciclos económicos

Os Açores já tinham passado por vários ciclos económicos na sua história, desde a exportação para a Flandres de plantas tintureiras (a urzela e o pastel), nos séculos XV e XVI, aos cereais, a pimenta malagueta, o vinho (bebido pelos czares da Rússia, em cujas caves foram, depois da revolução bolchevique de 1917, descobertas garrafas de Verdelho do Pico).

Houve depois o ciclo da laranja, durante o qual, conta António Cavaco, se construíram nas ilhas "os grandes boulevards, e os grandes jardins como o Parque Terra Nostra", em São Miguel. Foram tempos de grande riqueza, mas não era trabalho fácil apanhados por tempestades, muitos navios que transportavam laranjas para exportar naufragaram, e os laranjais foram atingidos por duas pragas que ditaram o fim deste ciclo, ao qual se seguiria o ciclo do ananás, o do chá e por fim "a monocultura da vaca".

Culturalmente, a pesca da baleia marcou muito as ilhas. Mas, desde que foi proibida, a relação dos açorianos com as baleias transformou-se e hoje o arquipélago afirma-se como um local privilegiado para a observação de cetáceos. E o polvo, no meio disto tudo? Deixou de poder ser apanhado com um anzol escondido num pano branco. "Começou a ser erradicado da alimentação urbana, quando passou a ser pescado por mergulhadores de apneia e a tornar-se mais caro. Os mergulhadores apanham-nos à mão, assim como apanham as lapas e as cracas. Mas não é fácil, porque normalmente o polvo está camuflado e só o olho experiente do mergulhador permite vê-lo [escondido em buracos nas rochas]."

Recuperado agora como maravilha, o polvo pode estar prestes a ter uma nova vida. E o que tem, afinal, este prato de especial? "O polvo mantém-se inalterado ao nível da textura e da volumetria", explica (e temos que reconhecer que o exemplar que nos chegou à mesa não tem nada a ver com aqueles polvos raquíticos que encolheram para menos de metade dentro de uma panela).

E agora, graças a António Cavaco, é já um polvo com um passado que saboreamos. Um polvo que não foi a primeira escolha dos açorianos, mas que a confraria não deixará cair afinal a história das ilhas passa (também) por ele.

 

Receita

 

O polvo é cozinhado "sem uma gota de água", apenas com azeite, cebola e alho, "e a própria destilação do polvo no puxado de cebola". Junta-se depois pimenta da terra, massa de tomate, um pouco de açaflor (açafrão), um copo de vinho de cheiro, uma gota de cerveja para amaciar. Quando as batatas estiverem cozidas, o polvo está praticamente pronto. É então que entra no forno, para alourar.

 

Via Público



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Terça-feira, 27.09.11
Com a geografia baralhada: sardinha assada

 

Em Setúbal, gostam dela mais pequena, por isso mandam a que pescam para Lisboa e vão comprá-la à Nazaré. Confusos? Os portugueses adoram sardinha assada, mas esta parece ter a geografia trocada. E se este ano ainda não engordou, a culpa será do clima... e dos espanhóis.

Tem de se dizer a verdade, defende Pedro Piedade. E a verdade é que "a sardinha que se come em Setúbal não é de Setúbal". Pedro sabe melhor do que ninguém o que está a dizer. Por volta da meia-noite, já está a telefonar para a Nazaré para saber como correu a pesca. Se lhe disserem que há peixe, sardinhas e carapaus, é o que lhe interessa, ele encomenda e põe-se a caminho para o ir buscar. Se lhe dizem que "ninguém está a fazer nada" no mar, então liga para o Algarve e lá vai, para ir buscar a meio caminho a sardinha do tamanho que os setubalenses gostam.

Às sete, já está no mercado de Setúbal para as vender se conseguir, dorme à tarde um bocado. E se estamos aqui a meio da manhã a discutir isto é porque a sardinha assada é um dos 21 pratos finalistas do concurso das sete maravilhas da gastronomia portuguesa e é identificada com a região de Setúbal.

O que Pedro está a dizer não significa que não haja sardinha no mar de Setúbal, nada disso. Há sardinha e os pescadores apanham-na. O que acontece é que são sardinhas maiores e essas vão para Lisboa. No fundo, há um problema de geografia e de sardinhas em Portugal. "Do Tejo para cima, querem a sardinha grande; do Tejo para baixo, querem-na pequena." E os vendedores de peixe, como Pedro Piedade, percorrem o país para norte ou para sul para tentar que a sardinha acerte com a geografia do gosto dos portugueses.

Pedro debruça-se na banca e apanha uma sardinha pequenita, e com a outra mão um carapau médio. "Está a ver? É mais ou menos esta a diferença", explica. De Lisboa para cima, as pessoas gostam de sardinhas com o tamanho de pequenos carapaus. A que Pedro está a vender hoje é de Portimão, porque o vento não deixou os pescadores da Nazaré saírem para o mar.

Mas que fique clara uma coisa: toda a sardinha, seja grande ou pequena, tem que ser gorda para ser boa. Já no outro dia tinhamos ouvido dizer aqui que "a sardinha deve ser como a mulher setubalense, pequenina e gordinha".

Estamos a aprender que há uma ciência para as sardinhas como para tudo, aliás. E ainda nem sequer falámos com Laura. Quando, perto do meio-dia, chegamos ao restaurante dela, o Ribeirinha do Sado, o lume já está pronto e o assador no seu posto, à espera dos primeiros pedidos. Laura é pequenina como as sardinhas de Setúbal, mas é uma força da natureza, com o cabelo sempre bem puxado para trás, preso numa trança, os gestos rápidos e nervosos de quem sabe que gerir um restaurante não permite distracções, mas sabe também que há sempre um tempo para dois dedos de conversa com os clientes que querem saber o que é que ela aconselha nesse dia.

O ouro dos pescadores

Laura pode ensinar-nos muito sobre sardinhas. Sentamo-nos numa mesa lá fora, e ela, que já tinha avisado que teria algumas coisas duras a dizer, dá uma notícia que desanima: "Sardinha boa já era. A sardinha nunca mais vai ser o que foi." Porquê? "Por causa do clima e da falta de preservação da espécie, aquilo a que se chamava o defeso, e que agora não se faz desde que as nossas águas foram entregues aos espanhóis, que apanham sardinha o ano inteiro."

O defeso começava no final do São Martinho, a altura da desova, em Novembro, e ia até ao final de Março era o período em que não se apanhava sardinha e ela tinha tempo de voltar a crescer. "A sardinha engordava e tomava gosto com as enxurradas da Primavera, as chuvas de Abril, que levavam a água das montanhas para o mar." Hoje "não há chuvas de Abril nem grandes tempestades" e não se respeita o defeso. Por isso, diz Laura, não se admirem por as sardinhas não engordarem.

Na praça de Setúbal, todos sabem disso: este ano, as sardinhas estão a demorar mais tempo a engordar. Passaram-se as festas dos santos populares e nada, as sardinhas ainda não estavam como deveriam. Laura diz que só começou a servi-las no restaurante a partir de Abril. Mas houve quem começasse antes, quando a sardinha era ainda muito magrita. E os clientes, que querem é comer sardinhas, vão aceitando mesmo quando a qualidade não é a que era no passado.

Antigamente, conta Laura, havia os tempos "dos créditos e das penhoras". Durante os meses em que se podia pescar, os pescadores apanhavam muito peixe e investiam em ouro o dinheiro que ganhavam. "Era por isso que as mulheres andavam sempre com os colares e os brincos de ouro, porque depois, no Inverno, quando vinha a fome, viviam da penhora do ouro e do peixe que tinham salgado."

No tempo em que havia quatro estações, e as chuvas vinham quando tinham que vir e o calor também, tudo tinha a ver com o calendário, continua Laura, enquanto os primeiros clientes começam já a chegar e o primeiro peixe começa a ser posto no lume. "Tem tudo a ver com o calendário. A Páscoa é em Abril e era tradição portuguesa nos dias de Páscoa fazer piqueniques com a esquilha [a sardinha muito pequena, ou petinga] frita com arroz de tomate, ou açorda, para se aproveitar o pão, que nessa altura ninguém deitava pão fora." E era a partir daí que a sardinha começava a engordar, até Novembro.

Agora, o que é que acontece? "A primeira sardinha que cá aparece, lá para meio de Março, é do Mediterrâneo", diz Pedro Piedade. Vem da zona de Barcelona, Tarragona, onde as águas são mais quentes e onde, por isso, as sardinhas aparecem mais cedo, iniciando o ciclo da engorda. "O primeiro peixe é apanhado pelos espanhóis."

Mal apanhado, na opinião de Laura, que se queixa de que, em vez de gelo, para manter o peixe, os espanhóis usam "um pó, um químico, que torna a sardinha moída, ardida, a escama perde-se toda, a espinha vem preta". Ela garante que para o Ribeirinha do Sado prefere gastar mais para ter sardinha melhor "chego a comprar um quilo ao mesmo preço de uma caixa que vem de Espanha e que traz quinze quilos."

Depois, a pouco e pouco, o peixe deixa o Mediterrâneo, chega ao Atlântico e inicia a subida da costa portuguesa. E começa a dança dos setubalenses a irem comprar sardinha à Nazaré e a mandarem a deles para norte.

"Um bom lume é básico"

Comprada a sardinha com o tamanho que cada um mais gostar, é assá-la, o que também implica saber. À volta da banca de Pedro Piedade, há quem fale da sardinha escorchada, que os setubalenses gostam de comer no São Martinho, aberta, escamada, sem cabeça e sem vísceras, e salgada para reduzir a gordura.

Mas é Laura quem nos vai explicar como se faz. "Criar um bom lume é básico. Começa-se a assar quando o carvão já está todo em brasa e não existe labareda, para não chamuscar o peixe. Um bom lume assa um bom peixe." É por isso que ela tem o carvão pronto, sem labaredas, ao meio-dia. Outra dica: o peixe deve ser virado poucas vezes. "Tem que ser grelhado como um bom bife". Quando está pronto de um lado (isso vê-se quando o olho se solta, criando uma geleia por baixo), vira-se, e quando o outro olho salta, pode seguir para a mesa.

E, mesmo já não sendo o que era, a sardinha continua a ser a rainha da festa. No mercado, vende-se mais do que todos os outros peixes; nos restaurantes, é o que os clientes mais pedem. Portugueses, mas também estrangeiros Laura já teve franceses que lhe pediram sardinhas cruas, que abrem para retirar os lombinhos e comê-los só com sal e limão.

Gorda, este ano, por enquanto, ainda não. "A gordura ela vai ter sempre, no período fértil", garante Laura. "Agora, o cheiro forte que tinha, isso não existe já..."

 

Via Público



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Segunda-feira, 26.09.11

Não foram os versos que lhe garantiram o lugar na História. Foi uma receita de amêijoas, que nem sequer é dele. Na Trafaria, nunca faltam as amêijoas à Bulhão Pato.

No livro de crónicas de Miguel Esteves Cardoso Em Portugal Não se Come Mal, há um capítulo chamado simplesmente Amêijoas à Bulhão Pato. Era irresistível começar por aí antes de partir para a Trafaria. Diz assim: "É certo que Portugal tem as melhores amêijoas e a melhor maneira de servi-las, mas também é verdade que 99 em cada 100 vezes são mal confeccionadas". E esta já é uma ideia preocupante para quem se propõe escrever um texto sobre as amêijoas à Bulhão Pato, que chegaram às 21 finalistas do concurso para escolher as sete maravilhas da gastronomia portuguesa (resultados no início de Setembro).

Uma pesquisa rápida pela Internet confirma os factos básicos: Raimundo António de Bulhão Pato (1828-1912) foi um escritor que ficou mais conhecido como amante da boa vida, caçador, gastrónomo e inventor de algumas receitas do que pelos seus poemas. No seu livro Escritores à Mesa (e outros artistas),o crítico gastronómico José Quitério reproduz algumas dessas receitas: perdizes à castelhana (que começa com uma indicação muito prática: "depenem-se quatro perdizes com todo o cuidado e o maior asseio"), arroz opulento e lebre à Bulhão Pato. Tudo pratos com um grau de elaboração superior ao das amêijoas que ganharam o nome do poeta.

Acontece, no entanto, que as amêijoas não foram uma dessas receitas inventadas por Bulhão Pato. José Quitério garante não existir qualquer escrito que demonstre a autoria do prato, admitindo-se que tenha sido uma homenagem de algum cozinheiro ao poeta. A ser o caso, escreve Quitério, só poderia ser João da Mata, chefe de cozinha do antigo Hotel Bragança e, contudo, a receita também não aparece no seu livro Arte de Cozinha, de 1876.

Nos tempos de Bulhão Pato, há muito que se comiam (e apanhavam) amêijoas na zona de Lisboa. Mas parece que ninguém tinha ainda pensado na forma mais simples possível de as cozinhar a forma que Bulhão Pato, poeta menor e com obra esquecida, inspirou. Partimos para a Trafaria, em busca da memória das amêijoas.

Na Antiga Casa Marítima, em frente ao rio, José Manuel Lousada está à espera que lhe tragam os bivalves, que recebe diariamente há quase 40 anos. Lá fora, um pescador arranja redes. Na cozinha do restaurante, prepara-se uma caldeirada que já está reservada para 14 pessoas que hão-de vir almoçar. "A gente, aqui, só gosta da amêijoa de mergulho", diz. A de arrasto, que vem nas redes, não é tão boa, vem mais partida, e essa segue para Espanha. Mas, a mergulhar, que José Manuel saiba, "só andam uns sete ou oito rapazes". E este ano não tem havido tanta talvez porque o defeso (o tempo em que não se apanha, para deixar a amêijoa crescer) não tenha sido devidamente respeitado.

A Antiga Casa Marítima é a mais antiga da Trafaria. Terá, acredita o dono, uns 120 anos. "Ao princípio, era uma tasca que servia petiscos." Ele e a mulher, ambos transmontanos, pegaram nela há 39 anos e o restaurante ganhou fama. As paredes e o tecto estão cobertos de objectos, muitos deles ofertas de clientes há quadros com notas de todo o mundo, há instrumentos agrícolas, uma colecção de ferros de engomar antigos e até um velho telefone de disco pendurado sobre o balcão. E coisa que nunca falta são as amêijoas à Bulhão Pato. "Os clientes pedem sempre um prato para começar".

A filosofia das amêijoas

Difícil mesmo (mas não impossível) será apresentá-las à altura da exigência de MEC. Voltemos à crónica: "É muito, muito difícil fazer amêijoas à Bulhão Pato, porque o principal é o molho e o principal do molho é a delicadíssima água das próprias amêijoas. É facílimo assoberbar o sabor dela: o alho, os coentros, o azeite e o próprio lume dão cabo dela num instantinho." Mas MEC, que se assume como alguém que "já denegriu o nome de Bulhão Pato uma centena de vezes", sabe o segredo (o difícil é pô-lo em prática): "as amêijoas devem comer-se no momento em que morrem quando abrem e deitam o sumo". Passado um segundo, já não é a mesma coisa. Ao ar, os bichos começam a secar e a ficar rijos.

É toda uma tese filosófica sobre como cozinhar amêijoas lume muito intenso, tempo muito breve. E o molho? "Deve ser cinzento e aguado - e pouco! - com o alho e os coentros a flutuar e colorir; o bom - e pouco! - azeite servindo apenas para rematar e dar consistência." MEC aconselha a pensar nas amêijoas "como materializações fantásticas da água do mar", pelo que, "tal como as ostras, não se comem: bebem-se."

Na Trafaria, uma coisa é certa: as amêijoas são fresquíssimas, apanhadas mesmo em frente, no Tejo. Depois é simples, explica José Manuel Lousada: "Não tem grande segredo, é alho, coentros, azeite, deixa-se aquecer bem o azeite e só depois se põem as amêijoas, para elas ganharem sabor. Estando frescas, abrem logo."

Bulhão Pato morou por aqui, no Monte da Caparica, onde morreu, em 1912. E, a dois passos da Antiga Casa Marítima, uma avenida homenageia o poeta cujos versos já ninguém lembra. A placa com o nome está num prédio em ruínas, mas a avenida desce depois até ao rio, onde as amêijoas continuam a esconder-se debaixo da areia antes de serem apanhadas pelos mergulhadores e voarem para o meio dos coentros, do alho e do azeite das frigideiras dos restaurantes ali em frente. E esta, sim, é a grande e sincera homenagem que podemos fazer a Raimundo António de Bulhão Pato.

 

Receita

 

Lavam-se as amêijoas muito bem, com água e sal, para tirar a areia. Leva-se ao lume o azeite com alhos picados, aos quais se juntam as amêijoas e os coentros picados. Tempera-se com sal e pimenta. Vai-se rodando a frigideira sobre o lume até todas as amêijoas estarem abertas, e no fim regam-se com sumo de limão.  

 

Via Público



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Sexta-feira, 23.09.11
Uma sopinha para o caminho: Sopa da pedra

Se o frade alguma vez existiu por aqui, ninguém sabe. Mas a história da sopa da pedra era boa e vinha mesmo a calhar para a sopa que José Manuel "Toucinho" inventou nos anos 60. Hoje a sopa faz mexer a economia de Almeirim.

Esta é uma história que começa em Almeirim, à procura da sopa da pedra, e acaba em África. Ou, pelo menos, foi isso que nos pareceu. Saímos de Lisboa para seguir a rota das maravilhas da gastronomia, com paragem marcada para Almeirim, perto de Santarém, onde esperávamos encontrar a célebre sopa, um dos 21 finalistas do concurso que em Setembro há-de revelar sete vencedores.

E, de facto, tudo correu como previsto. Junto ao Restaurante O Toucinho, onde há quase meio século terá nascido a tradição da sopa da pedra parecia-nos estar no sítio certo, sobre a porta anunciava-se que o local é "o pioneiro da sopa de pedra, desde 1962", esperavam-nos João Paulo Simões, grão-confrade e presidente da direcção da Confraria da Sopa da Pedra, vestido a rigor com o traje da confraria, igual aos dos trabalhadores das lezírias no século XIX, calças à boca de sino, colete, jaqueta e barrete preto (e ainda, ao pescoço, uma fita verde e vermelha com uma pequena colher de pau pendurada), e Rui Figueiredo, notável confrade e vice-presidente.

A sopa, essa estava na panela há várias horas geralmente começase a cozinhar às 6h30 da manhã e pelas 9h30 fica a descansar, o que é essencial ao processo, porque é durante esse tempo que o feijão vai engrossar o caldo, tornando a sopa aveludada. E as caralhotas o pão tradicional de Almeirim, que se come com a sopa (daqui a pouco os confrades já nos vão explicar a origem do nome) também já estavam feitas.

Na realidade esta sopa da pedra tem duas histórias a lenda, e a história real. A lenda é conhecida de todos. Havia um frade espertalhão que para conseguir comida chegava a casa dos aldeões e garantia que conseguia fazer uma sopa deliciosa só com uma pedra. Os que o recebiam, ansiosos por perceber como é que isso era possível, iam acedendo aos pedidos dele "Se agora me dessem só um dentezinho de alho é que isto ficava delicioso", "Está quase pronta, mas com um bocadinho de toucinho...", "E umas folhitas de couve." E por aí fora, até a panela estar cheia de coisas boas e a sopa estar deliciosa, com a pedra no fundo e tudo o resto que o frade tinha conseguido que lhe dessem.

A imagem do frade lá está, com o seu sorriso malicioso, em vários restaurantes de Almeirim e nos folhetos que a confraria fez para promover a sopa da pedra em Portugal (têm viajado incansavelmente por todo o país, de feira em feira, de evento gastronómico em evento gastronómico, conta João Paulo Simões), e até em Bruxelas, onde os confrades se deslocaram, com os enchidos, os feijões e as pedras, para fazer sopa no refeitório do Parlamento Europeu.

As pedras da calçada

A outra história, a real, nasce aqui neste restaurante, que começou por ser uma mercearia, fundada por José Manuel "Toucinho" e pela mulher, Maria Manuela Aranha. Há uma foto antiga que os mostra num pátio, debaixo de um telheiro, vasos de plantas pendurados na parede ao fundo, ela de cabelo apanhado e avental às pintinhas, segurando uma panela, ele, um homem alto, de cabelo ondulado e ao lado, uma menina segurando uma tijela grande nas mãos e olhando para o fotógrafo. Essa menina era Hélia Costa, que cresceu e hoje, ali na cozinha do Toucinho, entretanto alargado a várias salas, mexe com uma enorme colher de pau a sopa que se tornou célebre.

"Para receber os viajantes, e para ser mais rápido dar o jantar, os proprietários faziam esta sopa", conta João Paulo Simões. "E o número de viajantes foi aumentando." A fama da sopa começava a espalhar-se. "Alguém terá dito que era tão pesada que parecia as pedras da calçada." Foi então que se lembraram da lenda do frade e começaram a chamar-lhe "sopa da pedra". Quanto ao nome das caralhotas, tem uma explicação simples: é o que os daqui chamam aos borbotos da lã, e o pão é feito precisamente com os restos de farinha que ficam depois de se fazerem os outros pães e que se enrolam em pequenas bolinhas.

O fenómeno foi crescendo. Outros restaurantes começaram a fazer sopa da pedra e esta pôs Almeirim no mapa gastronómico do país agora dizem que aos sábados servem-se aqui três mil refeições. "Inicialmente os enchidos eram todos de fabrico caseiro", conta Rui Figueiredo. Era tradição local cada família matar um ou dois porcos por ano e faziam-se os enchidos em casa. Mas as regras da ASAE vieram mudar os hábitos e desde 2007 existe a Encherim, cooperativa de produtores de enchidos de Almeirim, que faz a morcela, o chouriço e a farinheira (curados artesanalmente em fumeiro de lenha) usados na sopa. A sopa já chegou à nossa mesa, o caldo grosso mas aveludado, os enchidos postos só no final para não amolecerem, os sabores diferentes da morcela, do chouriço e da farinheira a misturarem-se com o sabor do feijão. Teríamos ficado almoçados. Mas João Simões, o proprietário do Toucinho, marido de Hélia, não está disposto a deixar-nos sair assim, só com uma sopinha da pedra. E vai trazendo um delicioso lombinho na vara de louro e um bifinho à Guilho, que comemos acompanhando com vinho servido nos copos Serafim, usados nas antigas tabernas de Almeirim, uma tradição agora recuperada. João Paulo Simões e Rui Figueiredo contam como a confraria nasceu, em 2004, e como foi crescendo tem 38 membros efectivos, todos homens. E como nos últimos anos foi tendo cada vez mais actividade hoje fazem já parte do movimento europeu de confrarias e, apesar de terem outras actividades profissionais, todos os fins-de-semana estão em algum sítio a promover a gastronomia de Almeirim, em particular a sopa da pedra.

"Caralhotas a fartar"

Um dos confrades, António Cláudio, fez uma recolha dos pratos mais antigos da região comida de substância como sopa de feijão com couves e requentado, fígado de porco de cebolada ou caldeirada de bacalhau à Almeirim, orelha e rins de coentrada que publicou em livro, e fez também o hino da confraria que, entre elogios às caldeiradas, à massa à Barrão, ao entrecosto, às velhoses e coscorões, promete: "Defender a nossa terra/ E Almeirim divulgar/ sopa da pedra na berra/Caralhotas a fartar."

Por esta altura confessamos a João Simões que já não conseguimos experimentar as sobremesas, mas acedemos ao seu convite para vermos os outros estabelecimentos que tem. O primeiro fica a dois passos e é facilmente reconhecível como pertencendo à mesma família do Restaurante O Toucinho é uma adega ao estilo espanhol, que João Simões baptizou como El Tociño.

Mas a verdadeira surpresa vem a seguir e é agora que África entra nesta história. Atravessamos a estrada e passamos pelo portão de uma pequena propriedade, com relva bem arranjada e uma casa nova. Chegámos à Casa da Caça, um restaurante privado para grupos, que abriu há três meses, e João Simões transpira orgulho quando nos abre a porta.

De repente Almeirim desapareceu e estamos no interior da casa, sem janelas. Há uma lareira, sofás com peles em cima, cabeças de animais de elegantes cornos a decorar as paredes, uma mesa gigante feita de um único tronco de madeira, com lugar para 24 pessoas, há fotos tiradas por João Simões nas suas caçadas em África impressas nas papeleiras da casa de banho e na porta do frigorífico, música a criar ambiente de savana e, numa enorme caixa de vidro, um leão empalhado que tem aos pés uma camisola do Benfica nº21, e o nome de João Simões e a espingarda com que o proprietário do restaurante matou o animal.

Quando saímos da penumbra da casa e deixamos de ouvir os sons de África, a luz do sol surpreende-nos. Mas, sim, a bomba de gasolina está aqui ao lado, os restaurantes do outro lado da rua anunciam sopa da pedra, estamos ainda em Almeirim. O frade espertalhão sorri nos anúncios dos restaurantes, segurando a panela vazia com a pedrinha no fundo, como quem diz: "Isto agora com um bocadinho de farinheira é que era."

 

Receita

 

Lave muito bem o feijão (500 gr. de feijão encarnado/feijoca), que de preferência deve ser novo, para não ter de ser atempadamente demolhado, e coza-o juntamente com uma folha de louro, uma cebola e dois dentes de alho finamente picados. À parte coza as carnes (800 gr. de carne de porco/ toucinho magro, orelha e pés) e os enchidos (60 gr. de chouriça e 60 gr. de morcela) e uma farinheira (que deve ser cozida em separado). À medida que as carnes vão cozendo, corte-as em pedaços. Descasque as batatas (600 gr. de batatas novas) e corte-as em cubos também pequenos. Depois de cozido, separe um terço do feijão e reserve. Ao restante, junte as batatas, leve a cozer o conjunto, rectificando de sal. Usando a varinha mágica, reduza a puré o feijão cozido que separou. Junte o puré ao preparado já cozido, rectifique o sal, adicione os coentros picados e um pouco de pimenta. Depois de frios, corte os enchidos em rodelas finas. Junte ao caldo a carne e os enchidos. Decore com coentros picados e sirva quente, colocando uma pedra no fundo.

 

Via Público



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Quinta-feira, 22.09.11

 

Chanfana

 

Há em Portugal uma Capital da Chanfana e uma Capital Universal da Chanfana, e verdadeiros entusiastas deste prato feito com carne de cabra velha e vinho tinto. Terá sido inventado em tempos difíceis, mas sobreviveu e quer ser uma das sete maravilhas da gastronomia portuguesa.

 

Se a autoconfiança e a paixão dos seus fiéis for determinante, então a chanfana tem lugar garantido entre as maravilhas da gastronomia portuguesa. Para já, é uma das 21 finalistas do concurso para escolher sete, cujos resultados serão conhecidos em Setembro. E, no seu recipiente de barro preto, a chanfana apresenta-se orgulhosa da sua história. No folheto que Madalena Carrito nos dá, relativo à última Semana da Chanfana, Vila Nova de Poiares anuncia-se como a Capital Universal da Chanfana.

E, ali ao lado, Miranda do Corvo reivindica para si o título de Capital da Chanfana e berço do prato diz-se que no Mosteiro de Semide, e criou a Real Confraria da Cabra Velha. Mas, para o concurso, e pela chanfana, os dois municípios uniram-se (e também os de Góis e Lousã) e avançaram com uma candidatura conjunta.

Madalena Carrito é mordomo-mor da Confraria da Chanfana e estamos sentados no restaurante O Confrade, especializado neste prato. A nossa interlocutora está, vimos depois a descobrir, a cumprir um juramento. Percebemos isso quando nos entrega um canudo enrolado como se fosse um velho pergaminho é o juramento dos confrades da chanfana e reza assim: "Juro em consciência e honra defender pública e solenemente em qualquer momento ou lugar, a chanfana, defender as suas virtudes, salientar a sua nobreza e promovêla enquanto símbolo ancestral e tradicional das nossas gentes;

Juro ainda exigir a sua confecção com carne de cabra, vinho tinto de qualidade em caçoilos de barro preto, fornos tradicionais e elevá-la ao mais alto grau que o seu delicioso e inesquecível sabor lhe confere."

E aqui estão já enumeradas aquelas que, como irá explicar Madalena Carrito, são as condições essenciais para uma boa e legítima chanfana: a carne de cabra velha, o vinho da região (Dão e Bairrada) e o caçoilo de barro preto, feito também na zona. Já iremos aos pormenores. Antes deixemos a chanfana puxar dos seus galões históricos e mostrar que foi cantada por poetas e escritores. Em O Cavaleiro da Triste Figura, Miguel de Cervantes descreve a sua personagem como tendo "mostras de competência na arte de manipular a chanfana". Bocage, em Preside o Neto da Rainha Ginga, escreve: "Traz suja moça amostras de chanfana, em copos desiguais se esgota a pinga.". E Machado de Assis nas Falenas: "Quantas, deixando em meio a mal cozida/a sem sabor chanfana, iam de um salto/à conquista do mundo!". E, ainda, Miguel Torga, em Portugal: "[...] do caldo de couves faz manjar, do azeite uma tibornada, da lã churra um cobertor de papa e da carne de cabra uma chanfana de endoidecer... com tijelada no fim [...]".

A descrição mais viva vem, contudo, de Nicolau Tolentino de Almeida: "Suavíssimo cheiro, o qual augura/Grato manjar, mas que por causa justa/Dá um sabor que nem o demo o atura."

As invasões francesas

A chanfana nasceu, como muitos outros pratos da gastronomia tradicional portuguesa, como comida de pobres. "Esta região do Pinhal Interior Norte [Centro do país] é muito agreste", conta Madalena Carrito. "E a história da chanfana está associada às dificuldades que as pessoas enfrentavam. Quando a cabra estava velha, e já não dava leite para alimentar as crianças, nem dava cabritos, então a carne era usada na chanfana. E era cozinhada em vinho porque era carne velha, e o vinho ajudava a que não ficasse tão rija." Ficava no forno de lenha muito tempo e, ao arrefecer, era conservada na banha fria. Nos dias seguintes, de cada vez que se queria um pedaço, tirava-se do caçoilo, com um bocado de banha agarrado, e aquecia-se dizem que é ainda melhor dois ou três, ou mesmo quatro dias depois de ter sido cozinhada, comendo-se acompanhada por batatas cozidas e grelos.

Existem outras lendas sobre as origens da chanfana, entre as quais a de que terá sido inventada durante as invasões francesas, no início do século XIX. Durante três anos, os soldados de Napoleão ocupam a região e saqueiam tudo. Levam colheitas e animais, mas deixam para trás as cabras velhas, de carne rija, e as ovelhas velhas (que deram origem a outra versão do mesmo prato, a lampatana). Depois, com o tempo, foi-se tornando um prato de festas, feito para os casamentos e as romarias.

Há dez anos, depois da criação da confraria, a chanfana começou a viver uma espécie de renascimento. Agora, todos os anos, é feito um concurso com prova cega com os restaurantes da zona, para o júri escolher a melhor chanfana. "Poiares passou a ter muito mais visitantes e um maior crescimento turístico", afirma Madalena Carrito. "O movimento de pessoas à procura da chanfana duplicou ou triplicou."

Tem sido feito também muito trabalho com as escolas, com os alunos a provarem a chanfana (e apareceram até versões de empadas de chanfana, lasanha de chanfana, quiches de chanfana), mas também a conhecerem as olarias onde se fazem os caçoilos de barro preto, no centro oleiro de Olho Marinho. Pode parecer secundário, mas não é, garante Madalena Carrito. É que este é um barro poroso, "que permite absorver os excessos de gordura, de vinho e os aromas intensos do prato", o que não acontece com um barro vermelho vidrado.

Damos ainda um salto ao Centro Difusor de Artesanato, da Associação para o Desenvolvimento Integrado de Poiares, mas já não chegámos a tempo de ver alguém a trabalhar. Há muitas peças de barro preto espalhadas pelo espaço, e, saindo para o exterior, os fornos, onde são cozidas. Estes fornos são totalmente fechados com uma parede de tijolos, e só após 24 horas é que podem ser abertos. Lá dentro, o oxigénio é todo queimado, as peças abafam e o fumo penetra nos poros do barro tingindo-o de preto.

Também não assistimos, mas temos pena, a uma cerimónia de entronização de novos confrades. É uma cerimónia solene na qual os candidatos lêem o juramento, após o que o juiz da confraria lhes pergunta: "O que quereis agora?", ao que eles respondem: "Comer a chanfana". É nesse momento que se manda entrar os caçoilos, e, depois de todos provarem, nova pergunta do juiz: "Como está a chanfana?". E a resposta, em coro: "Excelente!". Com este entusiasmo, estranho seria que a chanfana não tivesse ficado entre as 21 finalistas.

 

Receita

 

Para a chanfana é necessário carne de cabra, vinho tinto, banha de porco, colorau, louro, cabeças de alho, sal e piripiri. Coloca-se a carne de cabra num cacçoilo de barro preto e tempera-se com os ingredientes. No final, rega-se com vinho tinto, que deve ser de boa qualidade. Vai ao forno de lenha, cerca de duas a três horas, e deixa-se lá ficar até apurar muito bem.

 

Via Público



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Quarta-feira, 21.09.11
Caldo Vedre

 

Come-se caldo verde em todo o país, mas no Minho, onde nasceu para dar forças a quem ia trabalhar para os campos, o caldo feito da couve galega que ali cresce estava a ficar esquecido. Agora, aquele que muitos recordam como o sabor da infância, está a querer regressar.

No texto que fez para a candidatura do caldo verde ao concurso que vai escolher as maravilhas da gastronomia portuguesa, João Guterres escreveu que no Minho existe uma cozinha cujos aromas nos transportam "numa viagem à memória dos sabores e cheiros da nossa infância, sendo fiéis a um paladar que sempre tivemos gravado no nosso subconsciente".

No caso dele isso era absolutamente verdade. Vem dessa infância minhota a memória da panela de ferro junto à lareira, com água, batatas, cebola e alho, depois o ritual de tirar as batatas e esmagá-las com um passador, ou às vezes só com o garfo, antes de as voltar a pôr ao lume, para depois lançar a couve galega cortada em ripinhas lá para dentro e comer assim o caldo, acompanhado com broa e rodelas de chouriço que se iam cortando com a faca. "Em tempos de menos abundância foi prato principal para os menos abastados. Sempre ali, junto ao fogo da lareira, naquela panela de ferro pronto para a partilha." Comia-se à noite, mas também de manhã, antes de partir para os campos.

Cresceu. Bem, na verdade não cresceu muito antes de começar a trabalhar. Aos dez anos, João Guterres deixou a escola e aos 14 "já estava à frente de quatro esferas a torrar café, cacau, amendoim e cevada". Aos 18 foi tomar conta do refeitório de uma fábrica têxtil. E depois, Angola. Quando regressou, veio para Valença, para o Minho da sua infância, subiu uma montanha, "um sítio tão isolado que só havia caminho para voltar para trás", e abriu um restaurante onde ninguém aconselhava tal aventura, numa casa do início do século XVIII, no meio de um parque natural. "Diziam que eu estava doido, mas eu tinha uma ligação sentimental muito grande ao sítio."

O restaurante "mudava a carta quatro vezes ao ano, com as estações". No Outono ia recuperar pratos de caça dos quais já poucos de lembravam. Foi um sucesso até de mais, porque a certa altura João Guterres já não conseguia gerir a quantidade de clientes que tinha. Agora é a filha, Amaya Guterres, quem tem um restaurante em Valença, o Quinta do Prazo (onde foi feito o caldo verde que o P2 fotografou para este artigo).

Hoje João Guterres negoceia em vinhos, mas continua a fazer uma das coisas que lhe dá mais prazer: investigar a cozinha regional minhota, andar pelas aldeias a recolher receitas esquecidas e pelos arquivos a pesquisar a origem dos pratos. Quando o concurso para a escolha das maravilhas da gastronomia foi lançado, achou que era impossível não estar lá o caldo verde, e avançou ele próprio com a candidatura. E também com a da lampreia, que acabou por não ficar entre as 21 finalistas das quais em Setembro irão sair as sete vencedoras.

"Onde há um português, há caldo verde", diz com convicção. Mas constatou uma coisa com alguma preocupação: "Há quatro ou cinco anos, havia aqui no Minho poucos restaurantes que trabalhavam o caldo verde." Apesar de a receita se ter espalhado por todo o país, e ser fácil comer caldo verde em muitos sítios de Portugal, no Minho, onde primeiro começou a ser feito, corria o risco de cair no esquecimento.

Com o concurso, as coisas estão a mudar. Já há vários acontecimentos organizados em torno do caldo verde. Ainda no outro dia, na Feira Medieval de Caminha, João Guterres andou a provar caldos verdes. Numa das barraquinhas desafiaram-no a descobrir o que tinha aquele caldo de diferente. "Pedi para não porem o chouriço para ver se percebia. E disse-lhes: 'Cozeram aqui toucinho!'" Acertou.

Apesar de defender a receita original do caldo verde de Valença, aceita com entusiasmo inovações. Aliás, sempre houve formas diferentes de o fazer, explica. "Aqui usa-se o alho e a cebola, no resto do país não. Há quem coza o chouriço dentro do caldo, o que dá um toque fumado, quem coza o chouriço à parte e depois junte um bocado da água dessa cozedura." O que, para ele, é um ponto importante é não usar a varinha mágica. "As lâminas destroem o grãozinho da batata, que é o que dá aquela aspereza na língua..." Ainda no outro dia o convidaram para fazer 250 litros de caldo verde para angariar fundos para o tratamento de uma criança, e ele lá levou atrás de si um passe-vite enorme, porque já sabia que lhe iam dar uma varinha mágica.

Tirando esse ponto, não faz recomendações especiais. O prato é muito simples é comida de pobres, com ingredientes baratos, que estavam à mão. A couve galega, por exemplo, "é muito típica desta região, estava sempre no meio dos campos de milho ou das latadas das uvas, é muito fértil, produz continuamente, e por isso era dada aos animais".

"Há quem goste da couve mais cozida ou menos. Às vezes há um excesso de cozedura." Mas porque é tão fácil encontrar um caldo verde mal feito? "A maior parte dos restaurantes coze a couve à parte, e às vezes até usa bicabornato para ela ficar verdinha." É a forma de terem tudo pronto quando o cliente lhes pede a sopa, mas o ideal seria cozerem a couve dentro do caldo, afirma João Guterres.

No livro Cozinha Tradicional Portuguesa, Maria de Lurdes Modesto regista duas receitas de caldo verde, um À Minhota, outro de Marco de Canaveses. No primeiro, recomenda que a couve seja cozida com o recipiente destapado e até deixar de saber a cru, e aconselha a escaldá-la antes no tempo de Verão, em que é mais rija. Que o prazer de comer um caldo verde oscila muito com a qualidade do que nos põem à frente na mesa comprova-se com a leitura de Camilo Castelo Branco. Um dos capítulos do livro Escritores à Mesa (e Outros Artistas), do crítico gastronómico José Quitério, é precisamente sobre Camilo e o caldo verde. E uma das referências que Quitério encontrou está em Leiam, novela publicada n'O Nacional, em 1849, em que um velhote está a fazer um caldo verde sobre o qual Camilo escreve: a verdura, "segundo reza a culinária do caldo verde, não deve dar mais do que duas voltas na panela". Nem todas as referências são positivas, mas há uma, em O Bem e o Mal (1863) de grande elogio: "Ora eu, que nesta fidalga e francesa Lisboa, tenho sido espectáculo de riso, pedindo nos hotéis e recomendando aos meus amigos o caldo verde, insisto contumazmente em me expor à mofa da gente culta, dando à estampa, neste lugar e para meu duradouro opróbio, o panegírico do caldo verde, caldo dos meus avós, e de padre João, e de sua irmã." Por duas vezes refere-se o escritor ao "unto", que, explica Quitério, é a manteiga de porco ou de vaca poderia utilizar-se no Norte em vez do azeite, que "chegou tarde" à região.

"Em desuso porquê?", interrogase João Guterres no texto da candidatura, ao constatar que o caldo admirado por alguns dos maiores escritores portugueses (incluindo Fernando Pessoa) e cantado no fado Uma casa portuguesa ("é só amor, pão e vinho, e um caldo verde, verdinho, a fumegar na tijela") andava desaparecido das cartas do restaurantes minhotos. "Que seria de uma boa sardinhada, em noite de S. João, se não houvesse o nosso caldo verde para a sossega?"

 

Receita

 

Deitam-se cerca de dois litros de água numa panela com 1dl de azeite e as batatas (750 g) descascadas e cortadas ao meio, uma cebola e três dentes de alho. Tempera-se com sal e deixa-se cozer. Logo que esteja cozido, tira-se do caldo e passase pela trituradora, voltando ao lume para apurar. Cortam-se as couves o mais finas possíveis, lavam-se e deitam-se na panela 15 minutos antes de a sopa ir para a mesa, deixando-as ferver com a panela destapada. Serve-se o caldo verde em tijelas de barro, com uma rodela de chouriço no fundo e um bocadinho de broa.

 

Via Público



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Terça-feira, 20.09.11

Pastel de Bacalhau

 

O pastel de bacalhau provoca polémica. O Norte reivindica-o. Lisboa também. É demasiado popular. Atravessa fronteiras geográficas e classes sociais. Está em todas as tascas. E também nos restaurantes de luxo.

 

Estávamos sem saber por onde começar a investigar a história do pastel de bacalhau. Já tínhamos tido, numa passagem pelo Norte, um pratinho de deliciosos bolinhos de bacalhau colocado à frente, enquanto o nosso anfitrião nos lançava a provocação: "Veja lá se consegue comer uns como estes lá em Lisboa..."

 

Mas o problema é que no concurso para a escolha das sete maravilhas da gastronomia portuguesa, em que o pastel de bacalhau é um dos 21 finalistas, ele aparece como sendo de Lisboa. O caso é polémico, percebemos rapidamente, mas, apesar de tudo, tentámos respeitar as regras e colocar o pastel em Lisboa. E, de repente, surgiram duas ajudas inesperadas - ambas involuntárias.

 

A primeira veio (mais uma vez) de Miguel Esteves Cardoso. Numa das crónicas do livro Em Portugal não Se Come mal há uma em que MEC fala daquilo a que chama a "Gastronomia Underground Portuguesa", as pequenas cumplicidades que nos dão acesso a coisas que acreditamos serem especiais. E conta como uma vez, no Gambrinus, em Lisboa, lhe disseram que não tinham cozido à portuguesa - "Não podemos, doutor - senão toda a gente queria..." "[Mas temos] especialmente para si... dois pastéis de bacalhau que, devidamente indoutrinados, escondemos dos demais comensais com o véu do guardanapo, com aquela culpabilidade que multiplica a delícia das coisas."

 

E pronto, tínhamos aí a desculpa para bater à porta do Gambrinus e perguntar como é que fazem pastéis de bacalhau num restaurante de luxo. Às dez da manhã, quando na Rua das Portas de Santo Antão os restaurantes começavam a preparar as esplanadas, e nas tasquinhas já havia pastéis de bacalhau prontos, entrámos no prédio estreitinho pela porta de madeira e vidro, olhando de relance para as cinco estrelas, percorremos o labiríntico espaço interior, por entre as paredes com painéis de madeira e vitrais, voltámos a sair para o exterior, e lá fomos dar ao escritório do gerente Dário Afonso. Minutos depois tínhamos ao pé de nós o chefe Carlos Oliveira, que trazia na mão a receita dos pastéis de bacalhau do Gambrinus.

Fritura rápida

Não é que seja um segredo - é basicamente a receita tradicional de pastéis de bacalhau (levam noz moscada, o que nem todos os cozinheiros põem). O que é especial é a forma como o bacalhau é esmagado juntamente com a cebola e o alho num almofariz (em vez de ser no habitual pano grosso que depois é batido).

 

Descemos à cozinha, seguindo o chefe. Por detrás da porta de ferro trabalhado da garrafeira aparece o objecto, uma peça enorme, em mármore, que, calcula Dário Afonso, poderá estar no restaurante desde os anos de 1940 (tal como a receita).

 

O outro pormenor que, explica o chefe, torna os pastéis particularmente cremosos é o facto de o puré de batata ser passado por um peneiro de malha fina. E, por fim, a fritura em óleo, a 180 graus, muito rápida, quase entrada por saída, para não ficarem embebidos em gordura. No Gambrinus os pastéis de bacalhau são ligeiramente mais pequenos, porque são enrolados com uma colher de sobremesa, o que faz com que fritem mais rapidamente.

 

Há sempre alguma coisa que faz a diferença e que permite dizer: "Não há cozido hoje, mas temos aqui só para si..." Porém, o que a visita ao Gambrinus comprovou foi que o pastel de bacalhau é uma das tradições gastronómicas portuguesas mais democraticamente espalhadas, desde a tasca da esquina ao restaurante de luxo. E - entra agora a segunda ajuda involuntária - é uma tradição antiga.

 

No site de Virgílio Gomes há uma crónica sobre os pastéis de bacalhau na qual o crítico gastronómico explica que o pastel nasce com a batata e (na opinião dele) entra em decadência por causa da batata (ou seja, pelo excesso de batata). Esta terá chegado a Portugal em 1760, mas só em 1798 é que a rainha D. Maria I publica um incentivo à produção de batata nos Açores, enquanto no continente, conta Virgílio Gomes, a Academia das Ciências entrega a medalha de ouro a D. Teresa de Sousa Maciel pela sua produção de batata. Será o filho desta, o visconde de Vilarinho de São Romão, quem publica em 1841 na Arte do Cozinheiro e do Copeiro a primeira receita do pastel de bacalhau, embora, segundo o crítico, fosse mais próxima das pataniscas.

 

A história continua, com receitas a surgirem com pequenas variações - com o nome "pastelinhos fritos de bacalhau à holandeza" em 1876, em Arte de Cozinha de João da Mata (que tinham a particularidade de terem queijo ralado), e como "bacalhau em bolos enfolados" no Tratado de Cozinha e de Copa de Carlos Bento da Maia (1904), onde se aconselha a fritura em azeite.

 

Tudo isto são pormenores que dariam para horas de debate apaixonado entre especialistas. No seu livro Cozinha Tradicional Portuguesa, Maria de Lurdes Modesto coloca a receita dos "bolinhos de bacalhau deliciosos" no Entre Douro e Minho, e inclui um cálice de vinho do Porto; Alfredo Saramago em Cozinha de Lisboa e Seu Termo aconselha a separar as gemas e a juntar as claras batidas em castelo e coloca na capa a foto dos pastéis de bacalhau. Mas, polémicas à parte, a verdade é que qualquer português reconhece um frito feito de bacalhau, batata e salsa picada quando vê um - pouco importa que esteja no Norte ou no Sul, pouco importa que lhe chame bolinho ou pastel.

 

Receita

 

Colocar as batatas (quilo e meio) num tacho com água temperada com sal grosso e levar ao lume até ficarem cozidas, escorrer e passar por um peneiro de malha fina, e reservar. Cozer o bacalhau (um quilo) em água durante cinco minutos, retirar para um prato e deixar arrefecer. Depois de arrefecido, limpar o bacalhau de pele e espinhas, desfiar e reservar. Num tacho, leve ao lume o azeite (2dl) e os alhos (seis dentes finamente picados) e deixe alourar; de seguida coloque as cebolas (três cebolas médias finamente picadas) e deixe refogar ligeiramente, apenas para alourar. Retirar do lume e juntar o bacalhau, deixar arrefecer um pouco, após o que há que colocar o preparado num almofariz e esmagar até obter uma massa. Numa tijela juntar o puré de batata, a massa de bacalhau, a salsa (100 gramas), os ovos inteiros (oito), e temperar com pimenta e noz moscada, envolver muito bem todos os ingredientes. A massa tem de ficar bem ligada e consistente para que os pastéis não fiquem moles. Passar duas colheres por azeite e, com uma delas, retirar uma colher de massa. Passar a massa de uma colher para a outra até ficar no formato do pastel de bacalhau. Fritar em óleo bem quente. Depois de fritos, colocar num prato com papel absorvente.

(Receita fornecida pelo restaurante Gambrinus)

 

Via Público



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Segunda-feira, 19.09.11
No princípio é o pão: Alheira de Mirandela

 

Percentagens de gordura, de humidade, de proteína - fazer alheira certificada é trabalho de rigor, pequenos ajustes, uma carne de porco mais saborosa, um pouco mais de galinha... O alho e o azeite são absolutamente essenciais. Mas tudo começa numa padaria.

Estávamos preparados para o cheiro forte a carnes e a fumado quando entrámos na fábrica das Alheiras Angelina. E, de facto, ele aguardava-nos, lá mais para a frente. Mas, antes disso, chegou um outro cheiro, surpreendente, a farinha e a pão quente acabado de fazer. E foi para uma enorme padaria que Sónia Carvalho, a proprietária, nos convidou a entrar.

O pão é a base da alheira, e a maior parte das fábricas em Mirandela tem padaria própria. "Tem que ser feito de forma adequada", explica Sónia Carvalho. "Com pouquíssimo fermento e baixo teor de sal, de forma a que não haja levedura dentro da alheira." Durante o dia, o pão que sai deste padaria é todo usado no fabrico das alheiras. De noite, é pão para venda ao público.

Sónia tinha pensado ser médica mas, por razões várias, acabou por ficar à frente do negócio fundado pelos pais (Angelina era o nome da mãe) e que fabrica as alheiras de Mirandela que ganharam este ano a Medalha de Ouro no Concurso Nacional de Enchidos, Ensacados e Presuntos, em Santarém.

Esta é uma alheira certificada (só existem sete produtores certificados de alheira de Mirandela), e isso tem muito que se lhe diga. Vamos seguir Sónia, que vai explicando. O processo começa com a lavagem das carnes de galinha, porco, peru e caça (todas de fornecedores nacionais, sendo a carne de porco da raça bísaro). Passamos depois pela zona em que o pão, saído da fábrica ali ao lado, é cortado em fatias, e entramos numa sala em que o calor da cozedura das carnes em quatro grandes panelas nos chega imediatamente à cara. "Toda a carne é desfiada à mão, e o toucinho é triturado à parte, numa máquina", descreve Sónia perante os vários recipientes com carnes que nos rodeiam.

Um homem vai colocando a água da cozedura sobre o pão em fatias para este amolecer, e o fumo sobe no ar. Entra tudo para um grande recipiente onde o pão se mistura com as carnes, sobre as quais são lançados o piripiri, o colorau e a pasta de alho. É daí que sairá a massa das alheiras.

Pode ser que, no passado, tudo isto fosse feito nas cozinhas das casas ao gosto de cada um. Hoje obedece a um rigoroso caderno de encargos que tem que ser cumprido para se obter o selo de certificação - tem que se respeitar uma determinada percentagem de proteínas, outra de gordura, outra de humidade. "A alheira de Mirandela não é toda igual", esclarece Sónia. "Há diferenças nos tipos de carne, nos condimentos que se usa. Nós, por exemplo, vamos buscar as proteínas mais à carne de galinha, outros fazem de outra maneira." E tem de ser galinha velha, porque é uma carne que necessita de mais tempo de cozedura e "dá um maior teor de proteína".

Aliás, vêm aí alterações no caderno de encargos, que é elaborado pela Associação Comercial e Industrial de Mirandela. Vai ser aumentada a percentagem de humidade, por exemplo. "A alheira certificada tem vindo a sofrer ligeiras alterações. Mas nós também somos críticos de nós próprios". Vão provando e aumentando isto, reduzindo aquilo, sempre à procura do sabor mais adequado. O primeiro caderno de encargos exigia que as alheiras fossem muito mais secas, mas "o mercado rejeita", explica. "Depois, há cerca de um ano, fizemos a introdução do porco bísaro, que é uma carne mais fibrosa e com melhor paladar, mais adulta, e o sabor melhorou muito."

Azeite e alho

Fala-se muito das carnes, mas a verdade é que, diz Sónia, "os sabores de eleição são o azeite e o alho". Nenhuma alheira fica digna desse nome se o azeite e o alho não forem bons. E, depois, é preciso gerir o que o mercado quer - ou o que o mercado está disposto a pagar. "As pessoas procuram cada vez mais alheira mais barata e com qualidade". Por isso, as Alheiras Angelina vendem muito mais a chamada "alheira corrente", o que, na perspectiva de Sónia, "é mau para a imagem da alheira", porque as pessoas acabam por a tomar pela certificada.

O problema é muito semelhante ao do queijo da serra - é preciso saber procurar o selo de certificação para distinguir a verdadeira alheira de Mirandela da alheira comum (que pode também ser feita em Mirandela, mas que não leva azeite e tem mais gordura de toucinho). "Antigamente, podia-se fazer alheira de Mirandela em todo o lado, até no Brasil". Agora não é assim, mas toda a diferença está num selo pequeno que passa despercebido à maioria das pessoas - o que vale é que a designação "tipo Mirandela" não é autorizada, para evitar as colagens abusivas.

Já estamos na sala onde é feito o enchimento das alheiras, em tripa de vaca salgada e passada depois por água para retirar o sal. A massa da alheira entra num funil e vai sendo despejada para dentro da tripa. As funcionárias separam depois as alheiras já cheias, que seguem para as estufas, onde ficam a secar durante quatro a cinco horas a uma temperatura média de 65 graus. Espreitamos para o fundo da estufa e lá em baixo está o fogo a arder, com lenha de oliveira e carvalho. Sónia explica que "aqui há mais calor do que fumo", ao contrário das estufas de fumeiro, usadas para a linguiça e o salpicão.

Conta-se (mas não se sabe se é verdade ou mito) que a alheira foi uma invenção dos judeus, que, para escapar à Inquisição, fazendo-se passar por cristãos novos, fabricavam enchidos como qualquer cristão. A diferença é que não lhes punham carne de porco, mas sim várias carnes diferentes, envolvidas pela massa de pão. "Como lhe punham muito azeite, a Inquisição julgava que era a gordura do porco". Era tão bom que os cristãos quiseram imitar, só que lhe juntaram a incontornável carne de porco.

Mas também se diz, conta Sónia, que a alheira não é exactamente de Mirandela, mas ganhou essa fama por ser em Mirandela a estação de comboio de onde partiam as alheiras feitas em vários sítios da região. "Todas as semanas, saíam para o Porto, de comboio, caixas de madeira que levavam as alheiras e que tinham o carimbo de Mirandela."

Lenda ou realidade, o facto é que as alheiras acabavam sempre no prato, fritas e acompanhadas geralmente por grelos e batatas cozidas. E se antigamente só se comiam no Inverno, agora, garante a proprietária das Alheiras Angelina, Agosto, com a chegada dos emigrantes, é o mês em que se vendem mais. Além disso, ganhou estatuto gourmet: nos últimos tempos, não há chefe de restaurante na moda que não tenha inventado uma forma original de cozinhar alheira.

 

Via Público



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Sexta-feira, 16.09.11

 

Entre

 

Carlos e Carmo não param. Têm que ordenhar um rebanho de 100 ovelhas duas vezes ao dia, fazer o queijo e o requeijão, acompanhar a cura, mudar "fraldinhas", tratar os cardos. Fazer queijo da Serra dá muito trabalho. Mas para eles é uma paixão.

 

Temos de reconhecer que não é fácil um casal instalar-se num hotel - mesmo que seja um turismo rural - acompanhado por um rebanho de ovelhas. Esta é a principal razão pela qual Carlos Lopes e a mulher, Maria do Carmo, não têm férias. O rebanho está ali nos campos, e os dois, para além de produtores de Queijo Serra da Estrela são pastores. O que significa muito trabalho.

 

Agora estamos no Verão e o ritmo de trabalho não é o mesmo. Ao final da manhã, quando chegamos à Quinta do Patarrego, em Germil, Penalva do Castelo, a calma é absoluta. O sol queima e conseguese ouvir o voo dos insectos. Na aldeia não se vê praticamente ninguém, mas as setas indicam o caminho para a queijaria.

 

As ovelhas têm que ser ordenhadas duas vezes ao dia, explica Carmo. "Às cinco, seis da manhã temos a primeira ordenha, depois lá para as cinco da tarde outra." Três horas de cada vez para ordenhar à mão as 100 ovelhas. Chegam a acabar os queijos do dia já perto da meia-noite.


A única familiar que sabia de queijos era uma tia, que tinha um rebanho. "Os primeiros passos foram com ela, e depois com os anos fui aperfeiçoando." Nesses tempos, antes da ASAE, os queijos eram fabricados em casa das pessoas. "Toda a gente fazia o queijo nas cozinhas", recorda Carlos. E nada de câmaras frigoríficas. "Dependíamos do chão de pedra para regular as temperaturas e a humidade, e as pessoas diziam 'Quero o queijo de Janeiro', que era o que tinha sido curado com baixas temperaturas e maior humidade." Ainda há clientes que dizem ter saudades desse ambiente, garante Maria do Carmo.Produzir queijo da Serra "tem de ser um trabalho familiar e sem horários", conclui Carlos, que começou a fazer queijo há 24 anos, quase por curiosidade (a família era mais ligada às carnes), e que nunca mais largou. "Foi uma aventura... mas as coisas vão-se enraizando. Provavelmente não pensei que perdurasse tanto tempo."

 

Muita coisa mudou, entretanto. Hoje não vamos poder ver o fabrico do queijo, porque nesta altura do ano não se faz queijo da Serra, mas Carlos e Carmo levam-nos a visitar a queijaria para explicar todo o processo. Já não é preciso ficar junto à lareira e mexer sempre o leite, pacientemente, até ele coagular. "Chegávamos a estar meio dia aqui a mexer." Agora têm uma cuba de coagulação que leva 100 litros (usam o leite do rebanho que têm e compram leite a outros pastores, para produzir por dia cerca de 30 quilos de queijo, na época que vai de Outubro a Junho) e demora uma hora.

 

Nos últimos dias, Carmo tem andado a aparar os cardos que estão lá fora - aqueles que têm uma cabecinha cheia de pelinhos entre o roxo e o azulado. É o cardo Cynara cardunculos, usado para coalhar o leite, e junto à cozinha há já uma caixa cheia dele. Só cresce nesta altura, por isso é preciso apanhar agora, secar "à sombra, como o chá", e guardar para o resto do ano. Vão-se tirando quantidades muito pequenas que se maceram num almofariz e, depois de coado, se junta ao leite, ao mesmo tempo que o sal. O queijo pode ser mais ou menos amargo consoante a quantidade de cardo - e há pequenas diferenças entre os vários produtores.

 

Via Público



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Quinta-feira, 15.09.11
Lagostas e santolas numa praia a desaparecer: Arroz de Marisco

 

A praia de Vieira de Leiria está a apostar no arroz de marisco para atrair turistas, mas os donos dos restaurantes preocupam-se por ver a areia a diminuir. Assim, nem a lagosta de Cuba lhes pode valer.

Ainda nem há cinco minutos que Alfredo Ramusga nos está a dizer como é fantástico o arroz de marisco da praia de Vieira de Leiria, que serve há trinta anos no seu Restaurante Marisqueira Lismar, quando o lamento surge: "Há um flagelo na nossa praia: está a desaparecer."

Olhámos para trás de nós e, visto dali, da esplanada do restaurante hoje fechado (apanhámos Alfredo Ramusga quando ele estava a transportar mercearias do carro para o estabelecimento), de facto o areal parece bastante pequeno. "Prometeram-nos um molhe há anos, e nada foi feito. A praia está a diminuir. Aumentaram o molhe na Figueira da Foz e a nós nunca mais nos põem um para termos uma praia digna."

Assim não há arroz de marisco que lhes valha, por mais saboroso que seja. Ramusga garante que é (nós iremos provar mais logo). "Fazemos o arroz à moda de Vieira. Já comi arroz de marisco em todo o país e nada tem a ver com o nosso. O nosso é fora-de-série. Tem lagosta, lagostim, todas as doçarias do marisco, é por isso que não é barato."

Agora que o prato chegou aos 21 finalistas do concurso das maravilhas da gastronomia portuguesa, os restaurantes da praia esforçam-se por o divulgar e apresentar no seu melhor. Vieira de Leiria percorre-se bem a pé, e os restaurantes ficam todos concentrados aqui neste pedaço da marginal onde estamos a ouvir Alfredo Ramusga dizer que "há um segredo, claro, que não podemos divulgar" na forma como se prepara este arroz. Um segredo ajuda sempre, já se sabe.

Mas entretanto Ramusga já nos fez levantar e atravessar a estrada para irmos conhecer a Dona Primavera, que está a olhar para o mar com um ar desanimado. É dela o apoio de praia de madeira à nossa frente e, apesar dos seus 65 anos, a Dona Primavera está decidida a não deixar que o mar lhe derrube o sustento. A casinha de madeira está assente num monte de areia junto ao muro da marginal, mas não é sequer possível andar à volta dela porque o mar comeu tudo em redor e só ela se aguenta ainda (visitámo-la no final de Junho, antes de a época balnear começar a sério).

A nós parece-nos inglório, mas a Dona Primavera não podia ficar simplesmente ali de braços caídos e foi pôr à frente da casa uma série de estacas de madeira que o mar derrubará sem hesitação. "Não dou cinco anos para que a praia da Vieira vá à vida", diz ela, que herdou a barraquinha dos pais e que se lamenta de ter de pagar a dois nadadores-salvadores e mesmo assim só poder abrir o negócio mais tarde do que é costume. "Nunca vi um Verão assim."

Também ela diz que a culpa é do molhe da Figueira. Todos os molhes a norte da Vieira vão retendo as areias, e para sul as praias começam a diminuir. A Câmara da Marinha Grande ainda mandou um tractor repor areia na praia, mas não é suficiente. "O número de turistas tem estado a diminuir. As pessoas não vêm para estar em casa. Vêm para estender uma toalhinha no areal..."

"A minha praia, vejo-a cada dia mais curta", confirma José Barrote, do restaurante O Cantinho do Mar."Estarem a pôr areia é como pôr açúcar num copo de água. Alguém tem mais poder que o mar?"

 

Via Público



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Quarta-feira, 14.09.11

Bacalhau à Gomes de Sá

 

"Glória da culinária portuguesa", é assim que a placa colocada na casa onde nasceu José Luís Gomes de Sá, no Porto, celebra o bacalhau por ele inventado. Farto de fazer bolinhos de bacalhau, Gomes de Sá pegou nos mesmos ingredientes e criou um prato novo.

Cinquenta mil réis. Terá sido esta a quantia que o proprietário do restaurante Lisbonense, na Travessa dos Congregados, no Porto, pagou pela receita original do Bacalhau à Gomes de Sá. Isto passou-se no início do século XX. Um século depois, o prato inventado por José Luís Gomes de Sá (1851-1926), conseguiu vencer vários concorrentes de peso e apresentar-se entre os 21 finalistas do concurso para escolher as sete maravilhas gastronómicas de Portugal.

O homem que primeiro pensou que o Bacalhau à Gomes de Sá poderia ser um sério candidato está sentado à nossa frente no Restaurante Líder, no Porto. Gonçalo dos Reis Torgal é um dos mais antigos gastrónomos portugueses em actividade - e se não o soubéssemos já, tê-lo-íamos percebido logo no momento em que, com gestos profissionais, retirou do bolso uma correntezinha metálica que passou em redor do pescoço para prender o guardanapo de tecido.

E é nessa qualidade de quem há muito se interessa pela gastronomia, e escreve sobre ela em crónicas em vários jornais, e ainda de fundador da mais antiga confraria gastronómica portuguesa, a Confraria Gastronómica da Panela ao Lume, que Reis Torgal esteve presente numa discreta mas sentida cerimónia que aconteceu em 1988 no Cais da Ribeira, no Porto.

É aí, logo acima da muralha fernandina, que fica um prédio estreito no qual terá nascido José Luís Gomes de Sá, que viria a ser um comerciante de bacalhau do Porto, e que talvez não tivesse ficado para a história se não fosse pelo prato de bacalhau que inventou e cuja receita original Reis Torgal tem em sua posse.

Manuel Moura, o chefe do Líder, já colocou na mesa bolinhos de bacalhau e rissóis, uma salada de atum com feijão frade, e umas amêijoas à Bulhão Pato, quando Reis Torgal começa a contar a história.

"O Gomes de Sá era um comerciante de bacalhau ali no Muro dos Bacalhoeiros [perto do Cais da Ribeira], e gostava de cozinhar. Fazia muito bem bolinhos de bacalhau, que costumava fazer um dia por semana para partilhar com os amigos. Um dia, já tinha tudo o que era preciso para os bolinhos de bacalhau - bacalhau, batatas, ovos, cebola, salsa, bom azeite - e disse para consigo 'estou cheio desta história dos bolos, vou fazer outro prato'. E com os mesmos ingredientes cria um novo."

Não imaginaria, certamente, a fama que o prato viria a conquistar. O bacalhau tornou-se um sucesso - de tal forma que, quando mais tarde atravessou um período de dificuldades económicas (o armazém ardeu, e Gomes de Sá foi acusado de ter ateado o fogo), a solução foi vender a receita. Terá então escrito a célebre carta em que explica como se cozinha, que Reis Torgal faz chegar ao P2, por correio electrónico, um dia depois.

Nessa, Gomes de Sá explica detalhadamente todos os passos da receita - importante é deixar as lascas de bacalhau num prato fundo, cobertas por leite quente, durante uma hora e meia, duas horas - e deixa dois avisos. O primeiro é o de que o prato deve ser servido "bem quente, muito quente". E o último é uma nota, que vem em post-scriptum com a frase que ficou mais célebre: "João, se alterares qualquer coisa já não fica capaz."

Reis Torgal ouviu a carta com a receita lida junto ao Muro dos Bacalhoeiros, na tal homenagem de 1988. A iniciativa partiu de João Figueiredo, um jornalista brasileiro, que se deslocou a Portugal para colocar a placa na casa onde nasceu Gomes de Sá.

Na cerimónia estavam alguns, poucos, gastrónomos portugueses, entre os quais Reis Torgal, que agora, em frente a uma magnífica açorda de gambas com filetes, discorre sobre a forma como os gastrónomos sempre foram vistos em Portugal apenas como "bons garfos", enquanto a França, por exemplo, soube dar o devido valor a pessoas como Curnonsky (1872-1956, célebre crítico de gastronomia cujo nome verdadeiro era Maurice Edmond Sailland), para o qual vários restaurantes reservavam uma mesa, sobre a qual uma placa celebrava o "príncipe dos gastrónomos".

Excelentes bacalhaus

Por que é que a Confraria da Panela ao Lume achou que, num país conhecido por ter mais de mil maneiras de cozinhar bacalhau, este prato se distinguia para ser candidato a maravilha? "É um prato que nasceu no Porto, e que vai para além do simples bacalhau cozido ou assado", explica.

O gastrónomo conta que D. Carlos costumava dizer que só há três maneiras de cozinhar o bacalhau: cozido, assado e estragado. "Eu costumo dizer que tenho comido excelentes bacalhaus estragados. E um deles é o à Gomes de Sá."

Não há ninguém que não conheça a invenção de Gomes de Sá. Mas não é assim tão fácil encontrar o prato nas listas dos restaurantes do Porto. Ao final da tarde, a Ribeira está cheia de turistas e mergulhada numa luz dourada. Percorremos os restaurantes perto do Muro dos Bacalhoeiros e as listas oferecem bacalhau frito, grelhado, à lagareiro, assado, e até bacalhau com natas. Mas não se vê o Bacalhau à Gomes de Sá. Na casa onde o comerciante de bacalhau terá nascido, hoje transformada em Guest House Douro, está a discreta placa sobre a porta: "Aqui nasceu José Luís Gomes de Sá, que inventou para o mundo o Bacalhau à Gomes de Sá, glória da culinária portuguesa. Homenagem de seus admiradores de Portugal e do Brasil, 1988."

O problema, diz o chefe Hélio Loureiro, tentando uma explicação para a pouca presença do prato nos menus, é que ele foi sendo adulterado e tornou-se um prato de cantina, mais parecido com "bacalhau à batatas de cá". O que só prova que Gomes de Sá tinha razão: se se alterar qualquer coisa "já não fica capaz".

 

Receita

 

"Pega-se no bacalhau demolhado e deita-se numa caçarola. Cobre-se tudo com água a ferver, e depois de tapar a caçarola abafa-se a referida caçarola com uma baeta grossa ou um pedaço de cobertor e deixa-se então assim, sem ferver, durante 20 minutos. A seguir, ao bacalhau que está na caçarola, e devem ser dois quilos pesados em cru, tiram-se-lhe todas as peles e espinhas e faz-se em pequenas lascas, e põe-se em prato fundo, cobrindo-se com leite quente, deixando-o em infusão durante hora e meia a duas horas. Depois, em uma travessa de ir ao forno, deitam-se 3dl de azeite fino, do mais fino (isto é essencial), 4 dentes de alho e 8 cebolas a alourar. Ter já dois quilos de batatas (cortadas à parte com casca), às quais se lhes tira pele e se cortam às rodelas de grossura de 1 cm e botam-se as batatas mais as lascas de bacalhau que se retiram do leite. Põe-se então a travessa no forno, deixado ferver tudo durante 15 a 20 minutos. Serve-se na mesma travessa, com azeitonas pretas grandes, muito boas e mais um ramo de salsa muito picada e rodelas de ovo cozido. Deve servir-se bem quente, muito quente."

 

Via Público



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Terça-feira, 13.09.11
Xarém com conquilhas

Foi no meio dos preparativos para um animado Festival do Marisco, em Olhão, que provámos o xarém com conquilhas o único representante do Algarve no concurso das sete maravilhas da gastronomia. É um prato que nasce do encontro da serra com o litoral. É com ele que termina a série dedicada a 21 maravilhas da gastronomia portuguesa.

Lá fora está quase a começar um barulho ensurdecedor. Está montado o palco para o Festival do Marisco de Olhão, são esperadas milhares de pessoas, há fileiras e fileiras de mesas e cadeiras brancas, muito arrumadas à espera da multidão que a partir do final da tarde há-de encher o Jardim do Pescador Olhanense para comer o marisco do Algarve.

Daí a pouco vão começar os ensaios de música, e vai deixar de ser possível conversar. Mas por enquanto ainda se consegue ouvir o que José Manuel Alves, grão-mestre da Confraria dos Gastrónomos do Algarve, tem para dizer. Encontramo-nos à porta do Restaurante O Horta, em frente do qual foi montado o festival. Lá dentro, Nuno Horta, que é, com a irmã, proprietário do restaurante, está numa azáfama para servir os almoços até às três, hora a que vai mudar-se de armas de bagagens para o recinto do festival.

Mas temos tempo para o que viemos aqui fazer: provar o xarém com conquilhas, o único prato que representa o Algarve na fase final do concurso para escolher entre 21 as sete maravilhas da gastronomia portuguesa. José Manuel Alves não se conforma por ver que uma região com uma gastronomia tão rica chegou apenas com um prato à final. E para provar que é verdade traz até uma lista com alguns exemplos de pratos um levantamento que, como grão-mestre da confraria, tem vindo a fazer de receitas que, em alguns casos, já só os mais velhos sabem fazer. São iguarias como ostras na brasa, papas de milho com presinhos de porco, de Cacela Velha, sopa de vagens, jantar de grão ou cozinha de batata, de Cachopo, na zona de Tavira, ou sopa montanheira e chícharos à moda de Estói.

Enfim, mas não podemos deixar que esta riqueza gastronómica nos distraia do propósito que aqui nos trouxe: o xarém. "A gastronomia algarvia é uma das mais ricas de Portugal, precisamente porque é muito difícil encontrar outra que reúna o litoral, o barrocal e a serra".

O xarém é um exemplo disso. "O litoral era a parte mais pobre do Algarve e os habitantes iam à serra e trocavam os mariscos e o peixe pelo milho". É desta junção do milho da serra com as conquilhas do mar que surge o xarém, prato de pobres, em que até o que parece bocadinhos de carne é pão frito a imitá-la.

Portanto, se há uma palavra-chave nesta história ela é: milho. "A serra vivia muito dos milhos e da caça". A história do milho no Algarve começa com os árabes, que introduziram um tipo de milho mais grosso na região onde, até então, só havia "um tipo de milho miúdo que ninguém comia". O clima era bom, e havia outra vantagem é que enquanto o trigo, por exemplo, pagava tributo, o milho estava isento. Não é por acaso que o xarém tem este nome. A palavra, explica José Manuel Alves, vem do árabe "zerem", embora em algumas zonas do Algarve lhes chamem apenas papas de milho.

Começaram-se, portanto, a fazer as papas de milho, que podiam ser mais ralas ou mais grossas, e neste caso como acontece ainda hoje podiam até ser comidas à fatia. Depois foi só juntar-lhes as conquilhas, os bocadinhos de pão frito (com a gordura da fritura, para dar sabor) e uns bocadinhos de toucinho.

Era assim e continua a ser: o que faz um bom xarém é um bom milho. "Se tiver um bom milho, o xarém aceita tudo o que se lhe puser." E o conselho de José Manuel Alves é ir por exemplo à praça de Portimão, procurar a zona onde estão os monchiqueiros (os de Monchique), e comprar-lhes uns milhos ou uma farinha para xarém. "As casas da serra costumavam ter uma mó manual, a molineta, que vem do tempo dos romanos, e da qual sai um milho relativamente grosso."

Mais um conselho: nunca deixar de mexer as papas enquanto estas estão ao lume. "Quando começam a fazer barrigas de velha [pequenos balões de ar], já estão em condições." E, se se quiser ser criativo, pode-se juntar outros ingredientes. "Há as papas da caldeirada, ou com sardinhas, outros servem o xarém com camarão."

Nuno Horta traz para a mesa um xarém (que vamos comer como entrada) de um amarelo vivo, muito gostoso e cheio de conquilhas. Há quem o coma como prato principal, mas nós vamos ter ainda uma dourada grelhada acompanhada com açorda de marisco, e um vinho algarvio, o João Clara, que Nuno Horta diz não se cansar de promover porque já é tempo de os restaurantes algarvios apostarem nos bons vinhos da região.

José Manuel Alves continua a contar como o encontro entre o mar e a serra deu coisas únicas à cozinha algarvia. "Num espaço de cinco quilómetros encontramos dez receitas diferentes". Anda pelas aldeias a perguntar 'então, aqui onde é que se come bem?' e há sempre alguém que diz 'ah, ali a dona Maria é uma grande cozinheira', e depois a dona Maria tem uma vizinha que também sabe umas receitas. E José Manuel Alves que tem também o siteGastronomias, com um roteiro gastronómico de Portugal toma nota para no fim-de-semana, em casa, experimentar e ver como resulta. Tem encontrado coisas que o deixam encantado, como o cozido de grão com pêra corno, e várias receitas com outro produto que foi uma importante base da alimentação na serra, as castanhas. Ou ainda uns milhos aferventados, cuja confecção ele explica agora. "Começa-se por escolher uma boa lenha para fazer uma boa cinza. Põe-se a panela ao lume e quando começa a ferver põem-se os milhos e peneira-se lá para dentro um bocado de cinza." Os milhos são cozinhados nessa água com a cinza.

Mas chega de receitas. Nuno Horta já tem tudo arrumado para ir para o Festival do Marisco, e nós, depois de terminarmos um excelente D. Rodrigo (doce algarvio feito de ovos e acúçar e embrulhado em papel de prata), temos que sair do restaurante ("ao menos o D. Rodrigo podia estar entre os candidatos ao concurso", lamenta ainda o confrade).

O barulhento ensaio de música já começou, perante o olhar atento de alguns curiosos que pararam à entrada do recinto. No interior, há já muita gente a trabalhar. São sobretudo mulheres, à volta de grandes panelas, numa espécie de linha de montagem em que uma corta as batatas, outra os pimentos, outra as cebolas e os alhos.

Ainda está tudo cru. José Manuel Alves brinca perguntando se se pode provar alguma coisa, as mulheres riem e dizem que só mais logo. "Ainda não está nada cozinhado." Vai haver mariscadas, feijoadas de marisco, marisco de todas as formas, e até paellas. O xarém também estará lá, mas nem todos os restaurantes o servem. Apesar disso, há um espaço próprio para as pessoas irem votar nele para o concurso das maravilhas. No espaço do Restaurante O Horta há um grande cartaz a lembrar a maravilha que o Algarve tem a concurso. Mas José Manuel Alves não se conforma ainda está a pensar em todas as outras maravilhas algarvias que ficaram esquecidas.

 

Receita

 

Põem-se as conquilhas (um quilo, para cinco pessoas) de molho em água e sal para largarem a areia. Leva-se ao lume uma panela com três litros de água temperada com sal. Assim que a água estiver morna começa a deitar-se o milho em chuva. Vai-se mexendo sempre com uma colher de pau. Entretanto corta-se o toucinho (200g) em bocadinhos e frita-se, assim como quadradinhos de pão. Deita-se no milho que está a cozer. Quando o milho fizer barrigas de velha, juntam-se as conquilhas que abrirão dentro do milho (outra versão é abrir as conquilhas fora, numa frigideira, e juntá-las depois às papas de milho). Pode-se também juntar coentros picados. No final junta-se uma colher de sopa de banha, rectifica-se de sal e serve-se.  

 

Via Público

 



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Quinta-feira, 08.09.11
Pasteis de Belém

 

Não vale a pena tentar. Muitos falharam antes, e nós falhámos também. Não há truque nem persistência que arranque o segredo dos pastéis dos donos da confeitaria que os fabrica. No país dos pastéis de nata, quem tem um segredo é rei.

 

Há nesta história qualquer coisa que lembra uma visita à oficina do Pai Natal, num lugar secreto do Pólo Norte, onde os duendes trabalham a fazer os brinquedos que os meninos pediram nas suas cartas.

 

Chama-se Oficina do Segredo o lugar onde não podemos entrar. É aí que trabalham os mestres do segredo - três das seis únicas pessoas no mundo que sabem o segredo da confecção dos pastéis de Belém (as outras três são o gerente da casa e dois mestres já reformados). E como é que provamos que somos dignos de partilhar o segredo?

 

Os mestres assinam um contrato de sigilo profissional, mas essa é a regra que menos peso tem", diz Miguel Clarinha, responsável pela comunicação da Antiga Confeitaria de Belém, em Lisboa. "A nossa forma de controlar a situação é garantir que cada novo mestre é alguém escolhido a dedo, que trabalha há muitos anos na casa. É uma aposta no carácter da pessoa que tem a ambição de chegar a mestre do segredo."

 

Quando alguém está para se reformar, um novo mestre começa a ser preparado. Não é um processo simples. São necessários vários meses de treino para o aprendiz se familiarizar, e a fábrica garantir que os pastéis continuarão a sair como sempre. "A gerência da casa está na mesma família há quatro gerações, mas não há registo de como chegou a esta família. O facto é que tem sido um negócio familiar e que a receita e a forma de produção artesanal se tem mantido exactamente igual."

 

Não vale a pena sonharmos com um velho pergaminho amarelecido e com nódoas de gordura, guardado num cofre fechado dentro da Oficina do Segredo. Pai Natal, mas não tanto. Miguel Clarinha sorri. "Se existe uma receita escrita, há muito tempo que está passada a limpo".

 

Muita coisa, aliás, ter-se-á perdido com o tempo desde que, segundo se conta, a receita foi inventada no Mosteiro dos Jerónimos. "Havia uma feira diante dos Jerónimos e era muito típico os monges comercializarem doces". Como em tantas outras histórias de doces conventuais em Portugal, com o encerramento do convento em 1834 o segredo do doce sai para o exterior, e o que se sabe ao certo é que a receita terá ido parar às mãos de um empresário chamado Domingos Rafael Alves que, em 1837, inaugurou ali a Refinação de Açúcar e Confeitaria de Belém Lda.

 

 

 

 

Via Público



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Terça-feira, 06.09.11

Pudim abade de Priscos

 

A figura do Abade de Priscos está a ser recuperada - até a forma que ele usou para o célebre pudim é hoje vista com emoção. O padre que era chamado para cozinhar para a família real quando esta ia a Braga, deixou um aviso: "O pudim é facílimo de fazer, difícil de acertar".

 

O abade tinha mão para a culinária. E tinha outra coisa essencial: tinha língua, ou seja, paladar apurado para provar os cozinhados. Não havia nenhum segredo - nem sequer na maleta que, diz-se, transportava consigo sempre que ia cozinhar. Seriam utensílios, ou talvez temperos, ervas da sua horta de Priscos. O resto era "a mão". E é isso que continua a ser determinante hoje para fazer um bom Pudim Abade de Priscos, um dos 21 finalistas do concurso das maravilhas da gastronomia portuguesa.

José Dias junta o indicador e o polegar para exemplificar o que está a dizer: "Uma pitada! O que é que entendemos por uma pitada? Depende muito da mão de cada um." Estamos sentados à mesa no seu Restaurante Bem-Me-Quer, em Braga, enquanto esperamos por Agostinho Peixoto, que acaba de entrar pela porta colocando ao pescoço o escapulário da Confraria Gastronómica do Abade.

É o princípio de uma intensa tarde gastronómica inspirada por essa figura do Abade de Priscos, que descobrimos agora numa fotografia. Não é exactamente o estereótipo do abade gordinho e careca. É uma figura elegante, de cabelos brancos, rosto sereno. Manoel Joaquim Rebelo nasceu em 1834 e morreu em 1889, e conquistou fama de excelente cozinheiro, quando foi abade na localidade de Priscos, junto a Braga. Era tão conhecido que o chamavam sempre que era preciso cozinhar por ocasião de visitas da família real, ministros ou bispos.

E desses tempos contam-se muitas histórias, como esta que o crítico gastronómico e autor José Quitério registou: o abade ter-se-á dedicado a triturar um feixe de palha para obter um polme muito fino que usou depois em recheios e molhos numa refeição confeccionada para D. Luís. "No final, D. Luís, agradado, mandou chamar o padre Machado Rebelo, felicitou-o e quis saber de que eram feitos determinados pratos de sabor delicioso.

- Era de palha, Real Senhor! - Palha? Então dá palha ao rei!? O abade baixou a cabeça e com um sorriso malicioso esclareceu: - Perdoai, Real Senhor! Mas... Todos comem palha: a questão é saber prepará-la e... pôr-lha diante."

Ousadia não lhe faltava, portanto. Mas vinha-lhe certamente da confiança de se saber um cozinheiro admirado por todos. Para além do pudim, era famoso por pratos como o consomé de perdiz à Abade de Priscos, pela cabidela, pelos bifes, por vários pratos de bacalhau, pelo doce de abóbora, os bolinhos de côco ou o doce de marmelo. Nesses tempos de enorme influência francesa na cozinha, os menus dos banquetes preparados pelo abade para a família real eram, naturalmente, escritos em francês - e lá estão os filets de boeuf à l'Abbé de Priscos para entrada ou o consommé de perdrix à l'Abbé de Priscos.

"Anti-segredos"

Mas foi o pudim que aqui nos trouxe, e é melhor começarmos a falar dele. Ah, não, parece que ainda não. É que José Dias traz-nos agora, só para abrir o apetite, um prato de tripas com mão de vaca, acompanhado por um espumante Casa Senhorial do Reguengo. A seguir virá um bacalhau à Bem-Me-Quer, com batata e cebola, as lascas do bacalhau a deslizarem, separando-se ao toque do garfo, desta vez com um vinho verde Quinta de Azevedo.

Tudo, claro, para nos preparar para o pudim. Agostinho Peixoto está precisamente a dizer que a Confraria do Abade é "anti-segredos" e que o pudim não tem segredos. Tanto é assim que todos os restaurantes e pastelarias de Braga, e muitos particulares, sabem fazer o doce, e concorrem alegremente no concurso anual do melhor Pudim Abade de Priscos. A parte difícil, pensamos nós, cabe ao júri. Como se diferencia entre 30 pudins destes?

Em primeiro lugar, avalia-se a cor, "que deve ser um alaranjado-acastanhado" ou um "castanho que mescle com o laranja", sendo fundamental que a parte de cima não esteja queimada. Depois, a textura, que "tem que ser limpa, uniforme, dentro e fora", ou seja, corta-se uma fatia do pudim, e este não pode aparecer esburacado. Não podemos também esquecer o cheiro. "Não pode ter cheiro de pudim flan", avisa.

E, por fim, o sabor: deve ter "um travo aveludado" e "tem que se desfazer na boca". Não devemos ter de mastigar um pudim como este. Peixoto procura as palavras certas. "Deve desaparecer na boca deixando o travo do ovo e um ligeiro travo da gordura do toucinho. O vinho do Porto tem de lá estar, mas não pode suplantar o resto." No fundo, já lá dizia o abade, "o pudim é facílimo de fazer, difícil de acertar".

Para acompanhar, José Dias traz-nos duas alternativas, um vinho do Porto, e um Moscatel Roxo de Setúbal. Acredita, contudo, que o Abade de Priscos talvez acompanhasse o seu pudim com um vinho de missa, muito doce.

Mais recomendações? "Quanto ao toucinho, o abade utilizaria o [porco] bísaro", admite Agostinho. "Mas não é a gordura do porco, é o toucinho, tem que ter um pouco de entremeada, e tem que estar muito bem salgado." Há momentos da receita que são cruciais, acrescenta José Silva. "O primeiro é o da execução da calda, que tem que ser lenta, até atingir o ponto de fio." O bater das gemas também é importante - "de preferência com colher e sempre para o mesmo lado". A cozedura em banho-maria é a altura em que podemos estragar tudo: "Se se abre a tampa de forma a deixar entrar água ou humidade da condensação, é o pior que pode acontecer."

Aliás, sobre formas, haveria todo um tratado a escrever. Agostinho Peixoto abre o computador para mostrar a fotografia da forma original, em latão, usada pelo abade. Parece um pequeno castelo, com ameias que acabam em bicos. Esta forma, que pertence hoje a uma família da região, foi mostrada num encontro dos confrades e, garante Agostinho Peixoto, provocou grande emoção. Hoje as formas já não são exactamente assim, mas mantêm uma base à volta dos bicos para não assentarem no fundo da panela durante o banho-maria.

Um dos objectivos da confraria - cujo traje inclui uma capa negra e um chapéu de aba larga típico dos abades - é "a democratização do pudim". A ideia é difundi-lo o mais possível, e nas escolas de hotelaria e turismo os chefes já o ensinam, o que "assegura a continuação da existência do pudim nas próximas décadas". Estão também a trabalhar com os jovens - em Setembro será criada a Confraria Gastronómica dos Abadinhos, para quem tem entre oito e 14 anos, "a idade crítica do palato, em que se ganha a criança ou se a perde irremediavelmente". A idade em que, como dizia o abade ao rei, se aprende a distinguir a boa da má palha, quando ela nos aparece à frente. E assim os confrades esperam poder passar o testemunho - neste caso, a colher - às novas gerações.

 

Receita

 

Misturam-se 500 g de açúcar em meio litro de água, e junta-se casca raspada de um limão qb, um pau de canela e 50 gr de toucinho fresco (uma fatia de toucinho não excessivamente gorduroso). Leva-se ao lume e, quando estiver em ponto de espadana, passa-se a calda por um passador de rede, vazando para uma tijela onde já se encontram 15 gemas de ovo e o vinho do Porto (um cálice), ligeiramente batidos. Com o açúcar em caramelo barra-se a forma onde se vai levar a cozer, em banho-maria, em forno muito quente. Tem-se o cuidado de só se desenformar quando estiver morno, para não acontecer que o pudim se desmanche.

 

Via Público



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Sábado, 12.02.11
A vida de saltos altos - Dia dos Namorados: ideal para comida afrodisíaca

Pelo menos nesta data, prepare algo especial para o seu companheiro ou companheira. Sabe o que são alimentos afrodisíacos? O que fazem? E será que resultam mesmo?

A palavra afrodisíaco vem de Afrodite, a deusa do amor, da beleza e possuidora de um forte poder sedutor.

 

Desde então estes alimentos vem descritos na História de várias civilizações, como por exemplo, dos romanos e gregos, com o intuito de aumentar fertilidade, isto porque a procriação era uma questão moral e religiosa de grande importância na sociedade, ou de um melhor desempenho sexual. Não nos podemos esquecer que antigamente a comida não era tão disponível como nos dias de hoje e, por isso, podíamos ter indivíduos desnutridos, que uma das consequências é a perda da libido, bem como a redução da fertilidade.

A verdade é que existem vários estudos, mas não se chegou a nenhuma evidência científica que qualquer uma das iguarias sugeridas tenham efeitos sobre o apetite e performance sexual. Sabe-se sim que alguns dos alimentos referenciados como afrodisíacos podem ser de origem química e física, ou seja, substâncias que compõem o alimento exercem sim um efeito positivo. Temos também, a origem mais importante, que é de origem "mental", ou seja, as associações que o nosso cérebro faz quando o alimento se assemelha aos órgãos sexuais e ao envolvimento do espaço (velas, perfume, música, roupa sexy).

Alimentos afrodisíacos: quais e porquê?

 

  • Ostras: um alimento muito conhecido quando falamos em afrodisíaco, para além da sua semelhança ao órgão sexual feminino, apresenta concentrações elevadas em zinco, um mineral essencial para a produção de testosterona e esperma.
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  • Vinho/Champanhe: em quantidades moderadas fazem despertar os nossos sentidos e relaxando as nossas inibições, mas atenção que em excesso provoca sonolência... não estrague o momento.
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  • Chocolate amargo: contém um estimulante chamado feniletilamina, que lhe dá a sensação de bem-estar e possui propriedades estimulantes. Há mais antioxidantes no chocolate que no vinho tinto, a combinação dos dois pode ser o segredo da paixão, mas sempre com moderação.
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  • Pimenta e pimentões: apresenta uma substância química chamada capsaicina, que lhe garante a característica de alimento picante e pungente, aumentado a frequência cardíaca e elevam a temperatura interna do nosso corpo, potenciando suores. Para além de outras propriedade que lhe estão atribuídas, elas influenciam na libertação de endorfinas, que causam a sensação de bem-estar e elevam o humor.
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  • Espargos: para além da sua forma sugestiva, eles são uma grande fonte de potássio, fibras, vitamina B6, B3, A e C, tiamina e ácido fólico. Este último faz aumentar a produção de histamina necessária para a potenciar o orgasmo em ambos os sexos.
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  • Mel: vai aumentar a produção de substâncias que dão prazer e ainda neutraliza os efeitos do álcool, diminuindo a sua absorção.
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  • Gengibre: é um estimulante do sistema circulatório, funcionando como vasodilatador, que vai potenciar o aumento da libido e performance sexual.
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  • Figo: é utilizado como estimulante sexual devido à sua semelhança, quando cortado ao meio, com o órgão sexual feminino.
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  • Abacate: a presença de vitamina E faz com que exista uma elevação da produção das hormonas masculinas e femininas. Antigamente os astecas chamavam o abacateiro a "árvore dos testículos", devido às parecenças com órgão sexual masculino.
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  • Banana: é rica em potássio e vitaminas do complexo B essenciais para a produção de hormonas sexuais e sugere uma forma fálica.

Outros alimentos e especiarias que podem fazer parte da lista de alimentos afrodisíacos: sementes de abóbora, amêndoas, romã, papaia, amoras silvestres e framboesas, morangos, açafrão, melancia, pistácio, rúcula, cardamomo, zimbro, canela, abacaxi entre outros. Uns pela aparência e outros pela composição.

 

Fique é longe, da alface, agrião, lentilhas, feijão, grão, fritos, alimentos ricos em gordura e bebidas alcoólicas em excesso, não queremos arruinar este momento especial com sonolência ou má digestão ou mesmo flatulências.

 

Inove na sua ementa, por exemplo, como entrada escolha uma salada de rúcula com amêndoas e figos, ou pode ter ostras cruas, para prato principal pode preparar uns peitos de frango temperados com gengibre e mel a acompanhar com abacaxi e sementes de abóbora salteados (caramelizados) em pouco açúcar (só para dourar) acompanhe sempre com um bom vinho e para finalizar experimente os famosos morangos regados com chocolate amargo derretido a acompanhar com um bom champanhe.

 

O importante é criar um conjunto de situações favoráveis, que andam em torno de uma ementa afrodisíaca, um lugar acolhedor, umas flores, uma conversa agradável, uma roupa sexy e uma companhia que o/a seduza. É fundamental que os dois estejam descontraídos e descansados, prontos para desfrutar de um jantar em torno de menu de delicias afrodisíacas. Lembre-se de Séneca, nas Cartas a Lucílio: "Se quiseres ser amado, ama".

Via A Vida de saltos Altos

 



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