Uma senhora magistrada do Ministério Público embebedou-se. Estava no seu direito. E, apesar de formada em Direito, conduziu o seu automóvel, torto e em contramão, na rua Alexandre Herculano, em Cascais. Depois, foi obrigada a soprar no alcoolímetro. O bafo atingiu a épica cifra de 3.08 gramas por litro no sangue. A magistrada foi detida por um sóbrio agente Polícia Municipal.
A procuradora, com uma brutal enxaqueca mais que justificada, devia ter-se apresentado, no dia seguinte, no Tribunal, a um seu colega procurador. Este, discreto e magnânimo para com a colega, considerou a detenção ilegal. Anulou-a e revogou o termo de identidade e residência, ignorando um parecer da Procuradoria-Geral da República, 2008, que considera legítimas as detenções feitas pela Polícia Municipal em flagrante delito.
Até aqui tudo perfeito. Quem não vê é como quem não bebe.
Só que o Procurador-Geral da República, denotando uma verdadeira intolerância ao álcool, mandou instaurar processo disciplinar à magistrada e esqueceu-se do colega magnânimo.
Para além disso, corre, ou vai ficar parado, no Tribunal da Relação de Lisboa, um inquérito-crime, contra a senhora procuradora. A moldura penal deste ilícito criminal, "condução de veículo em estado de embriaguez", prevê pena até um ano de prisão.
É claro que nada disto vai acontecer, felizmente, à senhora procuradora. Quando muito, uns dias de prisão de ventre se as bebidas ingeridas tinham efeito obstipante.
Ouvimos falar que parte da magistratura portuguesa é arrogante. Que não tem experiência de vida real. Que, muito jovem e acabada de sair do Centro de Estados Judiciários, entra a julgar casos difíceis, sem estar minimamente preparada, nem ter o bom senso que a maturidade e a experiência trazem. Que trata o cidadão comum, o funcionário judicial, ou o advogado, para não falar de testemunhas ou de arguidos, abaixo de cão. Que agenda, para a mesma hora, quatro ou cinco diligências, processuais sem respeito pelas pessoas, que passam horas intermináveis a pasmar nos tribunais, à espera da sua realização ou do seu adiamento. Que impõe prazos absurdos às partes, quando os próprios magistrados não são obrigados a cumprir prazos alguns. Que podem levar anos e anos para dar uma sentença, sem ninguém os incomodar por isso. Sem lhes pesar a consciência. E sem que a mão branda e corporativa do Conselho Superior de Magistratura lhes faça o mínimo remoque.
Eu não acredito em nada disto, que parece verborreia crispada de bastonário da ordem dos advogados. A Justiça portuguesa está bem e recomenda-se. É justa, célere, cega. Não distingue o pobre do rico. É exemplar do ponto de vista da educação para a cidadania.
O incidente da condução de um veículo movido a álcool, em Cascais, só demonstra que alguns magistrados, para não dizer muitos, sem a bênção protectora da popelina opaca das suas becas, são apenas humanos, demasiado humanos.
Via Falta de Castigo