Na Casa Correia, já cheira a tripas. Lá dentro, na cozinha, as panelas estão ao lume a cozer as carnes. José Correia está sentado por detrás do balcão, a olhar a rua através da montra cheia de melões e do papel a anunciar que o restaurante está à venda.
Quarta-feira, a meio da tarde, não há clientes, mas a dona Filomena está já a preparar tudo para a enchente que acontece todas as quintas-feiras ao almoço. Vêm de todos os lados para comer as tripas que ela faz - e dizem que as faz como mais ninguém no Porto e arredores.
O marido confirma. "Já cá vieram até de uma televisão alemã. Trouxeram para aí tanto equipamento que me encheram a casa toda, nem se podia andar". Nas paredes, estão emoldurados artigos que falam da arte da dona Filomena e da fama da Casa Correia.
A cozinheira está sentada na salinha de dentro, a ver televisão. Ao pé dela duas canadianas que a ajudam a andar de um lado para o outro para ir comprar as melhores carnes e transportar panelas enormes com as tripas, enquanto não volta a ser operada a um joelho que não lhe dá descanso - e que a leva a querer vender o restaurante.
Dona Filomena não foi feita para estar sossegada e, mesmo que tenha umas ajudantes às quintas-feiras, as tripas têm de ser feitas por ela, porque mais ninguém sabe. "Tirei isto da minha cabeça", repete, orgulhosa. Veio de Resende, distrito de Viseu, quando tinha 13 anos, trabalhar para um restaurante do Porto. "Tirei da minha cabeça. Disse 'vou fazer deste prato uma coisa muito melhor'. E os meus clientes dizem que que estão fartos de correr casas mas como isto nunca comeram."
Admira-se quando vê os turistas entrarem pelo restaurante e sentarem-se nas mesas que ela arranjou como se fosse uma casinha popular - há um arco com telhas entre a entrada e a sala, um aparador com louça ao fundo, quadrinhos nas paredes - trazendo na mão um guia turístico que aconselha a Casa Correia, o restaurante que já era da família do marido quando ela o conheceu. "Até estou na Internet", espanta-se.
E tudo por causa de um prato sobre o qual não quer revelar demasiado. "Passo a vida a correr e a procurar o melhor feijão. Ponho tudo o que são as carnes melhores. Muitos fazem tripas e nem vem a mão de vaca. As tripas que eu faço levam mão de vaca aos bocadinhos, bacon, moura [morcela], salpicão fino, mas vai tudo à parte, separado. As tripas vêm noutra terrina, e ao lado o alguidarzinho do arroz. Mais coisas, não digo. Já disse de mais", desculpa-se com um sorriso.
Escapulário ao pescoço
Mudança de cenário. Da Casa Correia para a sala alcatifada e as tapeçarias que decoram as paredes do restaurante do Hotel Porto Palácio. E para o reino do chefe Hélio Loureiro, onde se cozinha uma imensa quantidade de tripas para os convidados do jantar mensal da Confraria Gastronómica das Tripas à Moda do Porto. Alberto Lemos, médico, vem receber-nos com o escapulário ao pescoço e explica que, para estes jantares mensais, que têm sempre um orador convidado - hoje é Helder Pacheco, que vem falar do seu livro sobre o Académico Futebol Clube - não é preciso trazer o traje completo.
"Criámos a confraria há dez anos", conta Alberto Lemos. "Ao contrário de outras, esta não nasceu de um grupo de amigos que se juntavam porque gostavam de comer." O que aconteceu foi que, assustadas com o impacto da crise das vacas loucas, várias figuras da sociedade portuense decidiram defender o prato que deu o nome aos habitantes da cidade - os tripeiros. "Concluiu-se que o problema das vacas loucas não tinha nada a ver com o estômago da vaca" e proprietários de restaurantes, produtores, mas também médicos, engenheiros, académicos, enfim, "pessoas de peso social e cultural", juntaram-se para mostrar que comer tripas era seguro.
E assim, há dez anos que todos os meses se juntam num jantar como este. Na cozinha, um dos chefes, com uma enorme colher, vai mexendo o recipiente das tripas. "Têm que apurar. O feijão tem que estar bem cozido, untuoso, com a calda grossa", explica Hélio Loureiro, um dos fundadores da confraria. As carnes são cozidas em separado - atenção "não se pode depois usar a água da cozedura das tripas", avisa o chefe. A dobrada é cozida em três águas, sendo as duas primeiras deitadas fora, e só a terceira aproveitada para a cozedura.
Alberto Lemos aproxima-se do microfone para partilhar com os confrades (entre os quais estão hoje alguns jovens estudantes de Medicina estrangeiros, convidados especiais) uma preocupação: "Temos que divulgar as nossas queridas tripas". E explica que, no concurso para escolher as sete maravilhas da gastronomia portuguesa, as tripas, que conseguiram ficar entre as 21 finalistas, não estão, neste momento, na lista dos dez pratos mais votados (a votação só termina a 7 de Setembro). É preciso uma maior mobilização, apela o médico, anunciando um mega-almoço para 1500 pessoas no sábado seguinte.
"Queridas tripas"
É que o prato não é só bom, tem também uma história que dá uma boa imagem dos portuenses. Na verdade, há várias versões, explicara-nos, na véspera, Gonçalo Reis Torgal, da Confraria Gastronómica da Panela ao Lume, baseada em Guimarães. "Uns dizem que foi quando o bispo do Porto conseguiu convencer os cruzados a ajudarem à defesa de Lisboa e, em troca, prometeu abastecer de carniça as embarcações. A população deu a carne e ficou com as tripas. Outra diz que teria sido nas lutas liberais, quando os sitiados no Porto, depois de terem comido a carne toda, ficaram sem alimentos e passaram a comer as tripas."
Mas esta segunda versão não convence Reis Torgal. "O Camilo [Castelo Branco] fala das tripas em dois ou três romances e situa-as sempre em situações que mostram que já se comeriam antes das lutas liberais." Mesmo a versão das cruzadas levanta-lhe dúvidas. "Já [Alexandre] Herculano n'O Bobo, mata o frei Hilarião, prior de Guimarães, com uma palangana de tripas, e isso passa-se no tempo da fundação do condado portucalense."
Mas a história de que os tripeiros mais gostam é a que conta que o infante D. Henrique precisava de abastecer as naus para a conquista de Ceuta, em 1415, e pediu aos habitantes do Porto que contribuíssem com tudo o que pudessem. As naus encheram-se de carnes, devidamente salgadas para aguentarem a viagem, e os habitantes ficaram só com as miudezas, entre as quais as tripas. Terá sido então que inventaram uma forma de as cozinhar.
E, séculos depois, aqui está a sociedade portuense mais uma vez reunida à volta das tripas. À mesa fala-se do acordo ortográfico, das palavras que se usam no Brasil e em Portugal, contam-se pequenas anedotas, e elogiam-se as tripas - incluindo as da Casa Correia, onde pelo menos um dos comensais costuma ir, fielmente, às quintas-feiras.
Helder Pacheco há-de, mais tarde, contar a história da luta pela sobrevivência do Académico, que é também uma parte da História do Porto, e Hélio Loureiro vai servir-nos uma entrada de tártaro e sonho de bacalhau com pimentos, e uma sobremesa de pavlova com sorvetes de fruta.
Mas o momento alto - aquele onde o burburinho na sala aumenta com os "uumnss", acompanhados de acenos de aprovação - é quando chegam às mesas as "nossas queridas tripas". E até os convidados estrangeiros, pelo menos a brasileira que está na nossa mesa, pedem para repetir.
Receita
Depois de bem lavadas as tripas (um quilo) esfregue-as com limão e sal grosso lavando-as de seguida. Coza-as em água abundante com sal até ficarem bem cozidas. Limpe a mão de vitela (uma mão) e coza à parte. Noutro recipiente coza as restantes carnes (150 g de chouriço de carne, 250 g de orelha de porco, 250 g de toucinho, 150 g de presunto, 150 g de salpicão) e o frango (600 g). Coza o feijão (um quilo), que já está demolhado, com as cenouras (100 g) às rodelas e uma cebola aos gomos. Pique a cebola e core-a em azeite (5 cl) e banha (30 g). Junte todas as carnes cortadas em bocados e deixe refogar bem colocando de seguida o feijão já cozido. Tempere com sal, pimenta preta moída, louro (uma folha) e a salsa (40 g). Deixe apurar bem. Sirva em terrina, polvilhado, com cominhos e salsa picada e acompanhado com arroz branco seco.
Via Público