Sexta-feira, 9 de Setembro de 2011
Açorda alentejana

No princípio era comida de camponês que todos os dias agarrava na navalha para migar o pão para o alguidar. Agora a açorda pode ser rica, com pescada, amêijoas, ovos, figos. Mas a alma não mudou: poejo, coentros, azeite, alho e água a ferver.

 

Moinho do Cu Torto, Évora - era aí que tínhamos encontro marcado. Augusto Vieira, da Confraria da Moenga, já estava à nossa espera junto ao velho moinho de 1893, entretanto recuperado e hoje situado junto ao Restaurante O Moinho, onde vamos comer a açorda à alentejana feita por Ludgero Salvador. "Houve aqui um moleiro que era coxo, e o moinho ficou com essa alcunha", explica Vieira sorrindo.

Mas se são Ludgero e a mulher quem cozinha, quem faz as despesas da conversa é Augusto Vieira, que vem até munido de um grande livro antigo - "esta edição já não se encontra em lado nenhum, ou então vendem-na caríssima", garante. Trata-se de Através dos Campos, de José da Silva Picão, uma autêntica bíblia da vida nos campos alentejanos, com uma camponesa de ar saudável a sorrir na foto sépia da capa.

Vamos então ver o que diz a bíblia sobre a açorda, o único prato do Alentejo que chegou aos 21 finalistas do concurso para escolher as sete maravilhas da gastronomia portuguesa. Segundo Silva Picão, só há uma, "a clássica", ou seja, a açorda de alho, que era o que os homens comiam nas pausas dos trabalhos do campo. "O almoço consta ordinariamente de açorda com azeitonas. Da clássica açorda alentejana, cujo caldo o abegão [um dos trabalhadores agrícolas] prepara num instante, lançando a água a ferver sobre os barranhões, onde o cozinheiro depôs os temperos - azeite e sal picado com alho, poejos, coentros e pimentão".

Faltam apenas "as sopas", o pão cortado aos bocados. "Em seguida, cada qual puxa da navalha e todos passam a migar o pão para os alguidares, até mais lhe não caber." Convém, desde já, esclarecer aqui uma questão de linguagem: aquilo a que noutras zonas do país se chama "açorda" é aquilo a que os alentejanos chamam "migas", e nada tem a ver com a açorda à alentejana. Esta é feita com pão migado, a que os alentejanos chamam "sopas". A sopa não é, portanto, o caldo, mas sim o pão que lá se põe dentro. E mais uma coisa, sublinha o nosso anfitrião: "Esta é uma sopa que não é cozinhada, não vai ao lume. É apenas escaldada."

Os camponeses chamavam ao que comiam nos campos "a açorda com a mão no bolso", conta Augusto Vieira. "Era comida sem mais nada, só com azeitonas. Mais tarde foi sendo enriquecida, com o ovo, por exemplo, porque era uma coisa fácil de encontrar no campo, e depois com o bacalhau, nas famílias mais ricas."

A diferença do poejo

Aquela que está a ser preparada na cozinha do Moinho é riquíssima comparada com a da "mão no bolso" - Lugdero decidiu darnos uma açorda com pescada e amêijoas, em vez de bacalhau. Mas, seja o que for que se lhe acrescente, o que faz realmente o sabor do prato é o alho e os coentros. E hoje, estamos com sorte, vai ter também poejo, que nem sempre é fácil de encontrar.

"O poejo nasce no Alentejo espontaneamente e só há em certas alturas. Agora só há praticamente poejos secos. Quando começa a chuva, voltam", explica Augusto Vieira. Uma das iniciativas da Confraria da Moenga foi identificar pratos típicos da cozinha alentejana que usam ervas bravas comestíveis - é assim que (re)aparecem pratos como a poejada com bacalhau, a sopa de feijão com catacuses, a sopa de beldroegas, o pastelão de espargos-bravos ou a sopa de grãos com carne e cardos.

As migas de espargos, por exemplo, foram o outro prato que a confraria candidatou ao concurso das maravilhas da gastronomia, mas que não chegou às 21 finalistas.

 

É no Ciclo das Ervas Aromáticas e Comestíveis que a confraria divulga estas ervas desde sempre usadas pelos mais pobres. Mas organizou também outros ciclos, sempre relacionados com a recuperação de tradições - o ciclo do borrego, que vai da tosquia ao fabrico de queijo, o ciclo do porco, o ciclo do azeite, da cortiça, do vinho, da caça. E, claro, o ciclo do pão, que passa por este Moinho do Cu Torto, que Augusto Vieira nos convida agora a visitar.

Subimos e lá em cima está a mó ainda com alguma farinha. Temos de desviar a cabeça para não batermos nas grandes traves de madeira que seguram a vela. É isto a moenga que dá o nome à confraria. O dicionário diz que é uma coisa chata, aborrecida, demorada, mas para os confrades, a moenga representa este conjunto que faz a semente correr para a mó, onde é depois esmagada com aquele ruído contínuo, repetitivo. E é porque querem que o seu trabalho de confrades seja, acima de tudo, ligado aos trabalhos e produtos do campo que escolheram dois trajes, um que é o traje de trabalho dos camponeses e o outro é o fato domingueiro.

"Estamos a tentar fazer a recuperação de uma semente de trigo que existia aqui, o preto-amarelo, um trigo mais rijo, que deixou de ser utilizado na década de 1980. Era usado para fazer o bom pão alentejano". O pão que se quer para uma boa açorda. Mas, sobretudo, era usado nas massas alimentícias que se faziam na já desaparecida Fábrica de Massas Leões. Este tipo de trigo estava em vias de extinção, mas a confraria conseguiu arranjar 100 bagos a partir dos quais espera agora poder multiplicá-lo.

Ludgero vem chamar-nos. A açorda está quase pronta, e na mesa esperam-nos vários pratinhos com entradas - pezinhos de porco de coentrada, orelha de porco, pimentos com alho, carapaus de escabeche, cabeça de xara (feita a partir da cabeça do porco, que é desossada e prensada). O Moinho não muda de ementa. Quem aqui vem já sabe que vai encontrar a comida alentejana típica, com algumas diferenças conforme os produtos que existem nas diferentes épocas do ano.

Figos com sopas

Ao fundo de uma das salas, junto à entrada para a cozinha, ainda está um armário com produtos que aqui se vendiam no tempo em que era uma mercearia, do sabão azul e branco, aos quadrinhos de ardósia para a escola ou os piões. A certa altura, antes de Ludgero tomar conta da casa em 1997, a sala da frente funcionava como taberna e a de trás ainda como mercearia. Os novos donos não quiseram apagar a história e deixaram os produtos a enfeitar as paredes. A confraria, à qual Ludgero também pertence, tem a sua sede numa sala à parte, nas traseiras.

Chega finalmente a açorda, a cheirar intensamente às ervas aromáticas e ao alho. À parte, uma travessa com as postas de pescada cozida, as amêijoas e os ovos (que vão mesmo cozidos), e ainda, num cesto, o pão. Mas não terminou. Ludgero acaba de chegar com um prato de deliciosos figos frescos descascados. No campo, quando era época deles, os figos eram também comidos com "as sopas". Há quem os mantenha num prato à parte. Nós, seguindo o conselho de Augusto Vieira, colocámo-los dentro da açorda - e agradecemos o conselho.

Se a açorda à Alentejana começou por ser comida de pobres, esta pareceu-nos, sem dúvida, de ricos. E, para terminar, veio ainda - "só para provar" - um prato com sericaia com ameixas de Elvas, encharcada, e bolo de mel e noz. E, num golpe de misericódia, licor de poejo - só para nos recordar que na base de grandes sabores podem estar simplesmente ervas bravas, que nem é preciso comprar no supermercado porque estão ali, ao alcance de todos.

 

Receita

 

Coloca-se uma panela ao lume com água, onde se cozem o bacalhau e os ovos (uma posta e um ovo por pessoa). Partem-se os coentros e os poejos (podem-se usar ambos ou um só) e picam-se os alhos (dois por pessoa). Num almofariz, pisam-se estes ingredientes juntamente com o sal, até formar uma pasta, a que se chama "piso". Numa terrina, acrescenta-se ao piso um pouco de azeite e liga-se tudo com uma colher. Cortam-se algumas tiras fininhas de pimentão verde e juntam-se ao piso. Migam-se as sopas, que consiste em cortar o pão em pequenos cubos, tendo o cuidado para que todas as sopas tenham um bocado de côdea, para evitar que, depois de molhadas, fiquem muito moles. Retiram-se para uma travessa o bacalhau e os ovos, para podermos usar a água em que foram cozidos. Deita-se essa água a ferver na tijela com a mistura, apenas a suficiente para molhar as sopas, e mexe-se com uma colher de pau, provando a acertando o sal. Juntam-se então no recipiente as sopas de pão.

 

 

Via Público



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