Quando entramos na cozinha do restaurante Zé do Pipo, em Idanhaa-Nova, a primeira coisa que vemos é o sorriso de Josefina Pissarra - pequenina, discreta, de ar doce, um autocolante ao peito a dizer "Vote na Perdiz de Escabeche", e um 7, oferecido pelo concurso para a eleição das sete maravilhas da gastronomia portuguesa. É Josefina quem nos vai explicar de onde vem a tradição da perdiz de escabeche.
O Zé do Pipo abriu há sete meses. Maria de Jesus Esteves já tem um Zé do Pipo em Genebra, há muitos anos, mas, embora mantenha o restaurante na Suíça, achou que era tempo de apostar também na sua terra e abriu este que agora tem à porta um cartaz também a apelar ao voto na perdiz.
E, no entanto, a perdiz não seria o prato mais óbvio para representar a região (houve até uma polémica, porque a organização do concurso começou por colocar o prato em Alpedrinha e só depois o mudou para Idanha-a-Nova, o que provocou protestos indignados do município do Fundão). Não porque não tenha uma história - tem, como Josefina vai contar -, mas porque não é assim tão fácil encontrá-lo nos restaurantes.
"É um prato que já vem do tempo da minha avó", começa Josefina, enquanto José Messias, o cozinheiro brasileiro, seguindo as suas instruções, se afadiga em torno dos tachos onde a perdiz já está a ser cozinhada há algum tempo. Josefina Pissarra nasceu em 1935 em Penha Garcia, perto da fronteira. "Nessa altura nem havia luz. Penha Garcia esteve isolada até aos anos 50, não havia estrada nem para Monsanto, nem para Monfortinho. Para ir até Monsanto eram duas horas e meia de burro."
O pai tinha uma oficina de ferreiro (hoje transformada numa tasquinha com petiscos, e com o espaço do ferreiro ainda preservado) e era caçador nas horas vagas. Trazia muitas vezes para casa perdizes. "Como tínhamos muitas, tínhamos de as conservar." E faziam escabeche. "Guardávamos as perdizes num pote vidrado, e quando nos apetecia íamos buscar para fazer uma refeição." Apesar de não haver frigoríficos, conservadas assim as perdizes duravam muito, até porque em Penha Garcia os Invernos são muito frios. "A caça acabava no final de Dezembro, e elas chegavam a durar até à Primavera."
Havia também coelhos, mas com estes não se fazia escabeche. Eram meios-cozinhados, em azeite, e guardados assim. Depois, iam tirando as refeições dos potes vidrados. Das lebres, por exemplo, tiravam-se lombinhos, deixavam-se a marinar em vinagre, alho e sal, e fritavam-se. "Acompanhava-se com batatinhas pequeninas, que primeiro se coziam, tirava-se a casca e salteavam-se em azeite com um ramo de alecrim." O resto da lebre era para fazer empadinhas ou arroz. "Ninguém faz arroz de lebre como em Penha Garcia", garante.
Chefes correm a Idanha
Mas mesmo nesses tempos em que a caça era mais abundante, a perdiz não era um prato que se visse em todas as casas. "As pessoas com mais necessidades caçavam e vendiam tudo", sobretudo as perdizes, que rendiam mais. Depois a caça começou a escassear e a perdiz só aparecia em dias especiais.
E agora, de repente, há uma empresa que organiza um concurso para escolher as maravilhas da gastronomia em Portugal e lá aparecem os responsáveis municipais a bater à porta da dona Josefina e a perguntar pela perdiz. E, de um momento para o outro, na Festa Raiana, que se realiza em Idanha, há chefes vindos de escolas de hotelaria e de hotéis importantes a fazer show cookingcom inovações em torno da perdiz de escabeche.
"Está a haver uma recuperação da receita", confirma Armindo Jacinto, vice-presidente da Câmara de Idanha-a-Nova, que entretanto chegou também à cozinha do Zé do Pipo. "O chefe Mário Ramos do Hotel Fonte Santa em Monfortinho, por exemplo, foi buscar a receita ao senhor Rocha, que já morreu, mas que fazia uma óptima perdiz." Os pratos de caça têm fama na região, diz. "Temos 86 zonas de caça e uma unidade [a Do Bosque] que certifica carne de caça." Também já vende perdiz de escabeche enlatada.
Produtos da região
"Estamos a aproveitar esta atenção à perdiz para promover os produtos da região e para sensibilizar os restaurantes a usar produtos portugueses. É uma forma de puxar pelo sector agrícola e agro-pecuário. Queremos ver o fosso entre o interior e o litoral reduzido", explica Armindo Jacinto. Maria de Jesus Esteves, a dona do restaurante, acena concordando. Garante que no seu restaurante em Genebra, onde tem clientes de muitos países, a cozinha portuguesa faz grande sucesso, e praticamente só tem vinhos portugueses na carta. "A partir de agora vou passar a servir também a perdiz. Acho que vão gostar muito."
A receita, essa, é dona Josefina quem nos vai explicar. Primeiro a marinada em vinho branco. Muito importante é usar um ramo de carqueja, uma planta que se encontra facilmente no campo, e os pimentos vermelhos que se enfiam num linha e se põem a secar ao sol, e que, em certas alturas do ano, se vêem pendurados à porta das casas em Penha Garcia. O dia seguinte é para cozinhar as perdizes e fazer o escabeche. Não é rápido, mas nos anos de 1930, em Penha Garcia, o que não faltava era tempo.
Josefina Pissarra é uma entusiasta da gastronomia da sua terra. Já está a descrever como se fazem os ovos de malha, uma espécie de sonhos que não podem faltar nas festas de Penha Garcia. Mas, enquanto nos dá a receita, vai lançando um olho ao trabalho do cozinheiro. José Messias já juntou a perdiz ao escabeche, seguindo as instruções dela, e agora, com o restaurante a encher-se, tem de se dedicar a umas lulas com molho de camarão que a dona Josefina está a tentar aprender. "Adoro cozinha, estava aqui a ver se via como ele faz."
Receita
Põem-se as perdizes (receita para duas) a marinar de véspera com um litro de vinho branco, três folhas de louro, quatro dentes de alho, um ramo de carqueja e um de alecrim, pimentos vermelhos e sal. No dia seguinte alouram-se as perdizes em azeite e cozem-se lentamente na marinada. Faz-se o escabeche com 1,5 dl de azeite, três cebolas médias em rodelas, um pimento verde e um vermelho em tirinhas, duas cenouras em tirinhas, três dentes de alho, duas folhas de louro. Põe-se ao lume até cozer (atenção para não fritar a cebola) e deita-se meio copo de vinagre. Junta-se ao molho da perdiz e serve-se.
Via Público