Quarta-feira, 21 de Setembro de 2011
Caldo Vedre

 

Come-se caldo verde em todo o país, mas no Minho, onde nasceu para dar forças a quem ia trabalhar para os campos, o caldo feito da couve galega que ali cresce estava a ficar esquecido. Agora, aquele que muitos recordam como o sabor da infância, está a querer regressar.

No texto que fez para a candidatura do caldo verde ao concurso que vai escolher as maravilhas da gastronomia portuguesa, João Guterres escreveu que no Minho existe uma cozinha cujos aromas nos transportam "numa viagem à memória dos sabores e cheiros da nossa infância, sendo fiéis a um paladar que sempre tivemos gravado no nosso subconsciente".

No caso dele isso era absolutamente verdade. Vem dessa infância minhota a memória da panela de ferro junto à lareira, com água, batatas, cebola e alho, depois o ritual de tirar as batatas e esmagá-las com um passador, ou às vezes só com o garfo, antes de as voltar a pôr ao lume, para depois lançar a couve galega cortada em ripinhas lá para dentro e comer assim o caldo, acompanhado com broa e rodelas de chouriço que se iam cortando com a faca. "Em tempos de menos abundância foi prato principal para os menos abastados. Sempre ali, junto ao fogo da lareira, naquela panela de ferro pronto para a partilha." Comia-se à noite, mas também de manhã, antes de partir para os campos.

Cresceu. Bem, na verdade não cresceu muito antes de começar a trabalhar. Aos dez anos, João Guterres deixou a escola e aos 14 "já estava à frente de quatro esferas a torrar café, cacau, amendoim e cevada". Aos 18 foi tomar conta do refeitório de uma fábrica têxtil. E depois, Angola. Quando regressou, veio para Valença, para o Minho da sua infância, subiu uma montanha, "um sítio tão isolado que só havia caminho para voltar para trás", e abriu um restaurante onde ninguém aconselhava tal aventura, numa casa do início do século XVIII, no meio de um parque natural. "Diziam que eu estava doido, mas eu tinha uma ligação sentimental muito grande ao sítio."

O restaurante "mudava a carta quatro vezes ao ano, com as estações". No Outono ia recuperar pratos de caça dos quais já poucos de lembravam. Foi um sucesso até de mais, porque a certa altura João Guterres já não conseguia gerir a quantidade de clientes que tinha. Agora é a filha, Amaya Guterres, quem tem um restaurante em Valença, o Quinta do Prazo (onde foi feito o caldo verde que o P2 fotografou para este artigo).

Hoje João Guterres negoceia em vinhos, mas continua a fazer uma das coisas que lhe dá mais prazer: investigar a cozinha regional minhota, andar pelas aldeias a recolher receitas esquecidas e pelos arquivos a pesquisar a origem dos pratos. Quando o concurso para a escolha das maravilhas da gastronomia foi lançado, achou que era impossível não estar lá o caldo verde, e avançou ele próprio com a candidatura. E também com a da lampreia, que acabou por não ficar entre as 21 finalistas das quais em Setembro irão sair as sete vencedoras.

"Onde há um português, há caldo verde", diz com convicção. Mas constatou uma coisa com alguma preocupação: "Há quatro ou cinco anos, havia aqui no Minho poucos restaurantes que trabalhavam o caldo verde." Apesar de a receita se ter espalhado por todo o país, e ser fácil comer caldo verde em muitos sítios de Portugal, no Minho, onde primeiro começou a ser feito, corria o risco de cair no esquecimento.

Com o concurso, as coisas estão a mudar. Já há vários acontecimentos organizados em torno do caldo verde. Ainda no outro dia, na Feira Medieval de Caminha, João Guterres andou a provar caldos verdes. Numa das barraquinhas desafiaram-no a descobrir o que tinha aquele caldo de diferente. "Pedi para não porem o chouriço para ver se percebia. E disse-lhes: 'Cozeram aqui toucinho!'" Acertou.

Apesar de defender a receita original do caldo verde de Valença, aceita com entusiasmo inovações. Aliás, sempre houve formas diferentes de o fazer, explica. "Aqui usa-se o alho e a cebola, no resto do país não. Há quem coza o chouriço dentro do caldo, o que dá um toque fumado, quem coza o chouriço à parte e depois junte um bocado da água dessa cozedura." O que, para ele, é um ponto importante é não usar a varinha mágica. "As lâminas destroem o grãozinho da batata, que é o que dá aquela aspereza na língua..." Ainda no outro dia o convidaram para fazer 250 litros de caldo verde para angariar fundos para o tratamento de uma criança, e ele lá levou atrás de si um passe-vite enorme, porque já sabia que lhe iam dar uma varinha mágica.

Tirando esse ponto, não faz recomendações especiais. O prato é muito simples é comida de pobres, com ingredientes baratos, que estavam à mão. A couve galega, por exemplo, "é muito típica desta região, estava sempre no meio dos campos de milho ou das latadas das uvas, é muito fértil, produz continuamente, e por isso era dada aos animais".

"Há quem goste da couve mais cozida ou menos. Às vezes há um excesso de cozedura." Mas porque é tão fácil encontrar um caldo verde mal feito? "A maior parte dos restaurantes coze a couve à parte, e às vezes até usa bicabornato para ela ficar verdinha." É a forma de terem tudo pronto quando o cliente lhes pede a sopa, mas o ideal seria cozerem a couve dentro do caldo, afirma João Guterres.

No livro Cozinha Tradicional Portuguesa, Maria de Lurdes Modesto regista duas receitas de caldo verde, um À Minhota, outro de Marco de Canaveses. No primeiro, recomenda que a couve seja cozida com o recipiente destapado e até deixar de saber a cru, e aconselha a escaldá-la antes no tempo de Verão, em que é mais rija. Que o prazer de comer um caldo verde oscila muito com a qualidade do que nos põem à frente na mesa comprova-se com a leitura de Camilo Castelo Branco. Um dos capítulos do livro Escritores à Mesa (e Outros Artistas), do crítico gastronómico José Quitério, é precisamente sobre Camilo e o caldo verde. E uma das referências que Quitério encontrou está em Leiam, novela publicada n'O Nacional, em 1849, em que um velhote está a fazer um caldo verde sobre o qual Camilo escreve: a verdura, "segundo reza a culinária do caldo verde, não deve dar mais do que duas voltas na panela". Nem todas as referências são positivas, mas há uma, em O Bem e o Mal (1863) de grande elogio: "Ora eu, que nesta fidalga e francesa Lisboa, tenho sido espectáculo de riso, pedindo nos hotéis e recomendando aos meus amigos o caldo verde, insisto contumazmente em me expor à mofa da gente culta, dando à estampa, neste lugar e para meu duradouro opróbio, o panegírico do caldo verde, caldo dos meus avós, e de padre João, e de sua irmã." Por duas vezes refere-se o escritor ao "unto", que, explica Quitério, é a manteiga de porco ou de vaca poderia utilizar-se no Norte em vez do azeite, que "chegou tarde" à região.

"Em desuso porquê?", interrogase João Guterres no texto da candidatura, ao constatar que o caldo admirado por alguns dos maiores escritores portugueses (incluindo Fernando Pessoa) e cantado no fado Uma casa portuguesa ("é só amor, pão e vinho, e um caldo verde, verdinho, a fumegar na tijela") andava desaparecido das cartas do restaurantes minhotos. "Que seria de uma boa sardinhada, em noite de S. João, se não houvesse o nosso caldo verde para a sossega?"

 

Receita

 

Deitam-se cerca de dois litros de água numa panela com 1dl de azeite e as batatas (750 g) descascadas e cortadas ao meio, uma cebola e três dentes de alho. Tempera-se com sal e deixa-se cozer. Logo que esteja cozido, tira-se do caldo e passase pela trituradora, voltando ao lume para apurar. Cortam-se as couves o mais finas possíveis, lavam-se e deitam-se na panela 15 minutos antes de a sopa ir para a mesa, deixando-as ferver com a panela destapada. Serve-se o caldo verde em tijelas de barro, com uma rodela de chouriço no fundo e um bocadinho de broa.

 

Via Público



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