Se a autoconfiança e a paixão dos seus fiéis for determinante, então a chanfana tem lugar garantido entre as maravilhas da gastronomia portuguesa. Para já, é uma das 21 finalistas do concurso para escolher sete, cujos resultados serão conhecidos em Setembro. E, no seu recipiente de barro preto, a chanfana apresenta-se orgulhosa da sua história. No folheto que Madalena Carrito nos dá, relativo à última Semana da Chanfana, Vila Nova de Poiares anuncia-se como a Capital Universal da Chanfana.
E, ali ao lado, Miranda do Corvo reivindica para si o título de Capital da Chanfana e berço do prato diz-se que no Mosteiro de Semide, e criou a Real Confraria da Cabra Velha. Mas, para o concurso, e pela chanfana, os dois municípios uniram-se (e também os de Góis e Lousã) e avançaram com uma candidatura conjunta.
Madalena Carrito é mordomo-mor da Confraria da Chanfana e estamos sentados no restaurante O Confrade, especializado neste prato. A nossa interlocutora está, vimos depois a descobrir, a cumprir um juramento. Percebemos isso quando nos entrega um canudo enrolado como se fosse um velho pergaminho é o juramento dos confrades da chanfana e reza assim: "Juro em consciência e honra defender pública e solenemente em qualquer momento ou lugar, a chanfana, defender as suas virtudes, salientar a sua nobreza e promovêla enquanto símbolo ancestral e tradicional das nossas gentes;
Juro ainda exigir a sua confecção com carne de cabra, vinho tinto de qualidade em caçoilos de barro preto, fornos tradicionais e elevá-la ao mais alto grau que o seu delicioso e inesquecível sabor lhe confere."
E aqui estão já enumeradas aquelas que, como irá explicar Madalena Carrito, são as condições essenciais para uma boa e legítima chanfana: a carne de cabra velha, o vinho da região (Dão e Bairrada) e o caçoilo de barro preto, feito também na zona. Já iremos aos pormenores. Antes deixemos a chanfana puxar dos seus galões históricos e mostrar que foi cantada por poetas e escritores. Em O Cavaleiro da Triste Figura, Miguel de Cervantes descreve a sua personagem como tendo "mostras de competência na arte de manipular a chanfana". Bocage, em Preside o Neto da Rainha Ginga, escreve: "Traz suja moça amostras de chanfana, em copos desiguais se esgota a pinga.". E Machado de Assis nas Falenas: "Quantas, deixando em meio a mal cozida/a sem sabor chanfana, iam de um salto/à conquista do mundo!". E, ainda, Miguel Torga, em Portugal: "[...] do caldo de couves faz manjar, do azeite uma tibornada, da lã churra um cobertor de papa e da carne de cabra uma chanfana de endoidecer... com tijelada no fim [...]".
A descrição mais viva vem, contudo, de Nicolau Tolentino de Almeida: "Suavíssimo cheiro, o qual augura/Grato manjar, mas que por causa justa/Dá um sabor que nem o demo o atura."
As invasões francesas
A chanfana nasceu, como muitos outros pratos da gastronomia tradicional portuguesa, como comida de pobres. "Esta região do Pinhal Interior Norte [Centro do país] é muito agreste", conta Madalena Carrito. "E a história da chanfana está associada às dificuldades que as pessoas enfrentavam. Quando a cabra estava velha, e já não dava leite para alimentar as crianças, nem dava cabritos, então a carne era usada na chanfana. E era cozinhada em vinho porque era carne velha, e o vinho ajudava a que não ficasse tão rija." Ficava no forno de lenha muito tempo e, ao arrefecer, era conservada na banha fria. Nos dias seguintes, de cada vez que se queria um pedaço, tirava-se do caçoilo, com um bocado de banha agarrado, e aquecia-se dizem que é ainda melhor dois ou três, ou mesmo quatro dias depois de ter sido cozinhada, comendo-se acompanhada por batatas cozidas e grelos.
Existem outras lendas sobre as origens da chanfana, entre as quais a de que terá sido inventada durante as invasões francesas, no início do século XIX. Durante três anos, os soldados de Napoleão ocupam a região e saqueiam tudo. Levam colheitas e animais, mas deixam para trás as cabras velhas, de carne rija, e as ovelhas velhas (que deram origem a outra versão do mesmo prato, a lampatana). Depois, com o tempo, foi-se tornando um prato de festas, feito para os casamentos e as romarias.
Há dez anos, depois da criação da confraria, a chanfana começou a viver uma espécie de renascimento. Agora, todos os anos, é feito um concurso com prova cega com os restaurantes da zona, para o júri escolher a melhor chanfana. "Poiares passou a ter muito mais visitantes e um maior crescimento turístico", afirma Madalena Carrito. "O movimento de pessoas à procura da chanfana duplicou ou triplicou."
Tem sido feito também muito trabalho com as escolas, com os alunos a provarem a chanfana (e apareceram até versões de empadas de chanfana, lasanha de chanfana, quiches de chanfana), mas também a conhecerem as olarias onde se fazem os caçoilos de barro preto, no centro oleiro de Olho Marinho. Pode parecer secundário, mas não é, garante Madalena Carrito. É que este é um barro poroso, "que permite absorver os excessos de gordura, de vinho e os aromas intensos do prato", o que não acontece com um barro vermelho vidrado.
Damos ainda um salto ao Centro Difusor de Artesanato, da Associação para o Desenvolvimento Integrado de Poiares, mas já não chegámos a tempo de ver alguém a trabalhar. Há muitas peças de barro preto espalhadas pelo espaço, e, saindo para o exterior, os fornos, onde são cozidas. Estes fornos são totalmente fechados com uma parede de tijolos, e só após 24 horas é que podem ser abertos. Lá dentro, o oxigénio é todo queimado, as peças abafam e o fumo penetra nos poros do barro tingindo-o de preto.
Também não assistimos, mas temos pena, a uma cerimónia de entronização de novos confrades. É uma cerimónia solene na qual os candidatos lêem o juramento, após o que o juiz da confraria lhes pergunta: "O que quereis agora?", ao que eles respondem: "Comer a chanfana". É nesse momento que se manda entrar os caçoilos, e, depois de todos provarem, nova pergunta do juiz: "Como está a chanfana?". E a resposta, em coro: "Excelente!". Com este entusiasmo, estranho seria que a chanfana não tivesse ficado entre as 21 finalistas.
Receita
Para a chanfana é necessário carne de cabra, vinho tinto, banha de porco, colorau, louro, cabeças de alho, sal e piripiri. Coloca-se a carne de cabra num cacçoilo de barro preto e tempera-se com os ingredientes. No final, rega-se com vinho tinto, que deve ser de boa qualidade. Vai ao forno de lenha, cerca de duas a três horas, e deixa-se lá ficar até apurar muito bem.
Via Público