Sexta-feira, 23 de Setembro de 2011
Uma sopinha para o caminho: Sopa da pedra

Se o frade alguma vez existiu por aqui, ninguém sabe. Mas a história da sopa da pedra era boa e vinha mesmo a calhar para a sopa que José Manuel "Toucinho" inventou nos anos 60. Hoje a sopa faz mexer a economia de Almeirim.

Esta é uma história que começa em Almeirim, à procura da sopa da pedra, e acaba em África. Ou, pelo menos, foi isso que nos pareceu. Saímos de Lisboa para seguir a rota das maravilhas da gastronomia, com paragem marcada para Almeirim, perto de Santarém, onde esperávamos encontrar a célebre sopa, um dos 21 finalistas do concurso que em Setembro há-de revelar sete vencedores.

E, de facto, tudo correu como previsto. Junto ao Restaurante O Toucinho, onde há quase meio século terá nascido a tradição da sopa da pedra parecia-nos estar no sítio certo, sobre a porta anunciava-se que o local é "o pioneiro da sopa de pedra, desde 1962", esperavam-nos João Paulo Simões, grão-confrade e presidente da direcção da Confraria da Sopa da Pedra, vestido a rigor com o traje da confraria, igual aos dos trabalhadores das lezírias no século XIX, calças à boca de sino, colete, jaqueta e barrete preto (e ainda, ao pescoço, uma fita verde e vermelha com uma pequena colher de pau pendurada), e Rui Figueiredo, notável confrade e vice-presidente.

A sopa, essa estava na panela há várias horas geralmente começase a cozinhar às 6h30 da manhã e pelas 9h30 fica a descansar, o que é essencial ao processo, porque é durante esse tempo que o feijão vai engrossar o caldo, tornando a sopa aveludada. E as caralhotas o pão tradicional de Almeirim, que se come com a sopa (daqui a pouco os confrades já nos vão explicar a origem do nome) também já estavam feitas.

Na realidade esta sopa da pedra tem duas histórias a lenda, e a história real. A lenda é conhecida de todos. Havia um frade espertalhão que para conseguir comida chegava a casa dos aldeões e garantia que conseguia fazer uma sopa deliciosa só com uma pedra. Os que o recebiam, ansiosos por perceber como é que isso era possível, iam acedendo aos pedidos dele "Se agora me dessem só um dentezinho de alho é que isto ficava delicioso", "Está quase pronta, mas com um bocadinho de toucinho...", "E umas folhitas de couve." E por aí fora, até a panela estar cheia de coisas boas e a sopa estar deliciosa, com a pedra no fundo e tudo o resto que o frade tinha conseguido que lhe dessem.

A imagem do frade lá está, com o seu sorriso malicioso, em vários restaurantes de Almeirim e nos folhetos que a confraria fez para promover a sopa da pedra em Portugal (têm viajado incansavelmente por todo o país, de feira em feira, de evento gastronómico em evento gastronómico, conta João Paulo Simões), e até em Bruxelas, onde os confrades se deslocaram, com os enchidos, os feijões e as pedras, para fazer sopa no refeitório do Parlamento Europeu.

As pedras da calçada

A outra história, a real, nasce aqui neste restaurante, que começou por ser uma mercearia, fundada por José Manuel "Toucinho" e pela mulher, Maria Manuela Aranha. Há uma foto antiga que os mostra num pátio, debaixo de um telheiro, vasos de plantas pendurados na parede ao fundo, ela de cabelo apanhado e avental às pintinhas, segurando uma panela, ele, um homem alto, de cabelo ondulado e ao lado, uma menina segurando uma tijela grande nas mãos e olhando para o fotógrafo. Essa menina era Hélia Costa, que cresceu e hoje, ali na cozinha do Toucinho, entretanto alargado a várias salas, mexe com uma enorme colher de pau a sopa que se tornou célebre.

"Para receber os viajantes, e para ser mais rápido dar o jantar, os proprietários faziam esta sopa", conta João Paulo Simões. "E o número de viajantes foi aumentando." A fama da sopa começava a espalhar-se. "Alguém terá dito que era tão pesada que parecia as pedras da calçada." Foi então que se lembraram da lenda do frade e começaram a chamar-lhe "sopa da pedra". Quanto ao nome das caralhotas, tem uma explicação simples: é o que os daqui chamam aos borbotos da lã, e o pão é feito precisamente com os restos de farinha que ficam depois de se fazerem os outros pães e que se enrolam em pequenas bolinhas.

O fenómeno foi crescendo. Outros restaurantes começaram a fazer sopa da pedra e esta pôs Almeirim no mapa gastronómico do país agora dizem que aos sábados servem-se aqui três mil refeições. "Inicialmente os enchidos eram todos de fabrico caseiro", conta Rui Figueiredo. Era tradição local cada família matar um ou dois porcos por ano e faziam-se os enchidos em casa. Mas as regras da ASAE vieram mudar os hábitos e desde 2007 existe a Encherim, cooperativa de produtores de enchidos de Almeirim, que faz a morcela, o chouriço e a farinheira (curados artesanalmente em fumeiro de lenha) usados na sopa. A sopa já chegou à nossa mesa, o caldo grosso mas aveludado, os enchidos postos só no final para não amolecerem, os sabores diferentes da morcela, do chouriço e da farinheira a misturarem-se com o sabor do feijão. Teríamos ficado almoçados. Mas João Simões, o proprietário do Toucinho, marido de Hélia, não está disposto a deixar-nos sair assim, só com uma sopinha da pedra. E vai trazendo um delicioso lombinho na vara de louro e um bifinho à Guilho, que comemos acompanhando com vinho servido nos copos Serafim, usados nas antigas tabernas de Almeirim, uma tradição agora recuperada. João Paulo Simões e Rui Figueiredo contam como a confraria nasceu, em 2004, e como foi crescendo tem 38 membros efectivos, todos homens. E como nos últimos anos foi tendo cada vez mais actividade hoje fazem já parte do movimento europeu de confrarias e, apesar de terem outras actividades profissionais, todos os fins-de-semana estão em algum sítio a promover a gastronomia de Almeirim, em particular a sopa da pedra.

"Caralhotas a fartar"

Um dos confrades, António Cláudio, fez uma recolha dos pratos mais antigos da região comida de substância como sopa de feijão com couves e requentado, fígado de porco de cebolada ou caldeirada de bacalhau à Almeirim, orelha e rins de coentrada que publicou em livro, e fez também o hino da confraria que, entre elogios às caldeiradas, à massa à Barrão, ao entrecosto, às velhoses e coscorões, promete: "Defender a nossa terra/ E Almeirim divulgar/ sopa da pedra na berra/Caralhotas a fartar."

Por esta altura confessamos a João Simões que já não conseguimos experimentar as sobremesas, mas acedemos ao seu convite para vermos os outros estabelecimentos que tem. O primeiro fica a dois passos e é facilmente reconhecível como pertencendo à mesma família do Restaurante O Toucinho é uma adega ao estilo espanhol, que João Simões baptizou como El Tociño.

Mas a verdadeira surpresa vem a seguir e é agora que África entra nesta história. Atravessamos a estrada e passamos pelo portão de uma pequena propriedade, com relva bem arranjada e uma casa nova. Chegámos à Casa da Caça, um restaurante privado para grupos, que abriu há três meses, e João Simões transpira orgulho quando nos abre a porta.

De repente Almeirim desapareceu e estamos no interior da casa, sem janelas. Há uma lareira, sofás com peles em cima, cabeças de animais de elegantes cornos a decorar as paredes, uma mesa gigante feita de um único tronco de madeira, com lugar para 24 pessoas, há fotos tiradas por João Simões nas suas caçadas em África impressas nas papeleiras da casa de banho e na porta do frigorífico, música a criar ambiente de savana e, numa enorme caixa de vidro, um leão empalhado que tem aos pés uma camisola do Benfica nº21, e o nome de João Simões e a espingarda com que o proprietário do restaurante matou o animal.

Quando saímos da penumbra da casa e deixamos de ouvir os sons de África, a luz do sol surpreende-nos. Mas, sim, a bomba de gasolina está aqui ao lado, os restaurantes do outro lado da rua anunciam sopa da pedra, estamos ainda em Almeirim. O frade espertalhão sorri nos anúncios dos restaurantes, segurando a panela vazia com a pedrinha no fundo, como quem diz: "Isto agora com um bocadinho de farinheira é que era."

 

Receita

 

Lave muito bem o feijão (500 gr. de feijão encarnado/feijoca), que de preferência deve ser novo, para não ter de ser atempadamente demolhado, e coza-o juntamente com uma folha de louro, uma cebola e dois dentes de alho finamente picados. À parte coza as carnes (800 gr. de carne de porco/ toucinho magro, orelha e pés) e os enchidos (60 gr. de chouriça e 60 gr. de morcela) e uma farinheira (que deve ser cozida em separado). À medida que as carnes vão cozendo, corte-as em pedaços. Descasque as batatas (600 gr. de batatas novas) e corte-as em cubos também pequenos. Depois de cozido, separe um terço do feijão e reserve. Ao restante, junte as batatas, leve a cozer o conjunto, rectificando de sal. Usando a varinha mágica, reduza a puré o feijão cozido que separou. Junte o puré ao preparado já cozido, rectifique o sal, adicione os coentros picados e um pouco de pimenta. Depois de frios, corte os enchidos em rodelas finas. Junte ao caldo a carne e os enchidos. Decore com coentros picados e sirva quente, colocando uma pedra no fundo.

 

Via Público



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