As leis são feitas para pessoas mas, quando a Assembleia da República discutir a maternidade de substituição, os deputados poderão não saber de quem estão falar. São homens e mulheres que escondem o desejo de ter um filho como se planeassem um crime e que aprenderam a calar-se para não se sentirem julgados. Fazem-no tão bem ou tão mal que vivem entre nós e não damos por eles.
Manuel liga para o número de telemóvel que lhe foi dado por um médico, que serviu de intermediário. Ele conhece o nome da jornalista a quem está a telefonar, mas ela não sabe o seu nome. Foi o combinado. No primeiro telefonema, diz que não decidiu ainda, se aceitará dar o seu testemunho. "A maior parte das pessoas não entende isto, nem sei se vale a pena explicar."
"Só quem lida com estas pessoas pode ter ideia do que isto significa. Mas pode-se sempre tentar imaginar a frustração e o sofrimento daqueles para quem esta é a única possibilidade de ter um filho", diz Vladimiro Silva, consultor da Direcção-Geral da Saúde para questões da procriação medicamente assistida e administrador de uma clínica, a Ferticentro, onde aquelas técnicas são aplicadas.
Este médico não sabe quantas pessoas poderão vir a beneficiar da alteração da lei. Aparentemente são poucas, mas a maior parte não procura as clínicas, por saber que a maternidade de substituição é ilegal. Outros fazem-no para se certificarem de que, para terem o seu filho genético, terão de se deslocar aos chamados paraísos reprodutivos.
"Basta ir à Internet: nos EUA há empresas mediadoras e gabinetes de advogados que tratam da escolha do Estado cuja lei melhor se adequa a cada situação, que fazem seguros de saúde para a mãe de substituição e que asseguram que não há problemas com a entrada da criança no país de origem dos pais biológicos. O casal não gasta menos de 100 mil euros", avalia Vladimiro Silva. Quem tem menos posses, diz, pode recorrer à Índia ou à Ucrânia, "onde o processo fica muito mais barato (cerca de 15 mil euros), mas a possibilidade de algo correr mal é muito maior".
Vladimiro Silva diz não saber indicar quem tenha passado por aquele processo. Na verdade, já é difícil arranjar quem admita ter pensado nele.
Os outros contactos com casais que desejam beneficiar da maternidade de substituição envolvem cautelas semelhantes às de Manuel. A insistência no pedido de anonimato, o discurso cuidadoso e a negação da esperança são elementos comuns. O mesmo acontece em relação aos dias de hesitações e à ressalva de que só falam porque "o momento é decisivo".Temem ser "julgados" - nunca discutiram o assunto com mais de quatro ou cinco pessoas (familiares directos ou amigos muito próximos). A maior parte daqueles com quem convivem nem sequer sabe que enfrentam problemas de fertilidade, quanto mais que são irresolúveis sem o recurso à "barriga de aluguer".
Emocionado, Pedro diz que, às vezes, pensa "se não seria melhor dizer a verdade, para acabar de vez com as perguntas". "Dantes era: "Então, quando te casas?" Agora querem saber quando teremos filhos... E insistem, insistem...". Manuel queixa-se do mesmo. Nenhum deles responde com a verdade. Sentem-se em falta, é como se tivessem falhado um compromisso, como se tivessem saltado uma fase da vida.
Com aqueles que são apenas conhecidos, safam-se com um "andamos a trabalhar para isso". Aos amigos, dizem que ainda é cedo ou que ainda estão a pensar se querem ser pais; e depois - quando já são os únicos do grupo que não arrastam sacos de fraldas, carrinhos de bebé e papas - afastam-se, vão deixando de aparecer, evitando o contacto e as perguntas. Não se sentem melhor por isso - a solidão torna-se opressiva, a necessidade de ter um filho ainda mais urgente, constata Filomena Gonçalves, da Associação Portuguesa de Fertilidade.
"Acha que podia dar-nos o contacto de outras pessoas na mesma situação? Há anos que procuramos na Internet. Não conseguimos identificar ninguém", pede Manuel. Sofia, a mulher de Pedro, diz o mesmo: "Nos próprios fóruns sobre infertilidade, somos julgados e criticados se falarmos sobre maternidade de substituição". Carla não tem dúvidas de que, se a lei for aprovada, terá de enfrentar muitas resistências para ter o seu filho: "A maior parte das pessoas com quem lido nunca aceitarão."
Sabem do que falam. Manuel, por exemplo, faz regularmente o teste, uma dor inútil que inflige a si próprio: "Experimente perguntar descontraidamente, à mesa do café, como se não tivesse nada a ver consigo, o que é que as pessoas pensam da maternidade de substituição. Vai ver que são contra. Porquê? Não sabem. Faz-lhes "impressão".".
A seu favor estes casais têm o facto de a proposta de alteração legislativa se destinar apenas a casos em que a impossibilidade de engravidar se deve a doença - a maternidade de substituição para homossexuais não está em discussão, o que poderá fazer baixar o tom da polémica. Pesa, no sentido oposto, esta invisibilidade das pessoas que podem beneficiar de uma nova lei.
O presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, Eurico Reis, entende que se escondam - "são absolutamente discriminados, são os últimos dos últimos". Mas avisa que "está no momento de aparecerem". "Mexam-se, mostrem-se, façam petições!", apela. "Mais tarde, se se vir que a coisa vai mesmo para a frente", diz Sofia. Manuel nem admite dar a cara. E Carla só o fará se a lei for aprovada - "Para derrubar preconceitos", promete.
Mais tarde, depois de vários contactos, há-de dizer: "Em Portugal, a barriga de aluguer é crime, sabia? Punível com pena de prisão. E é muito estranho estar a assumir em voz alta que a única maneira de eu e a minha mulher termos um filho é irmos ao estrangeiro fazer uma coisa que aqui me levaria à cadeia." Ele está sentado num canto do sofá; Paula, a mulher, no outro. Ela quase não fala; ele mostra-se racional, metódico, aparentemente frio na forma como antecipa, num discurso lógico, a desilusão. (Ver depoimentos completos na página 6)
Leu as notícias sobre a posição do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, que recomenda à Assembleia da República a legalização, nalguns casos, da maternidade de substituição. Mas não quer criar expectativas sobre o "tremendo avanço que isso representaria".
Hoje, a chamada "barriga de aluguer" é liminarmente proibida em Portugal. A lei diz que mãe é quem dá à luz; e também que "quem concretizar contratos de maternidade de substituição a título oneroso será punido com pena de prisão até dois anos ou pena de multa até 240 dias".
Se a Assembleia da República aceitar as sugestões e alterar a legislação em vigor, haverá uma aberta. Continuará a não ser permitido qualquer pagamento, mas uma mulher que não tenha útero devido a um acidente ou a uma doença oncológica ou cujo útero não tenha dimensões ou outras características que permitam uma gravidez, poderá vir a celebrar de um negócio jurídico de maternidade de substituição.
O procedimento é muito simples: os óvulos e os espermatozóides do casal são fertilizados in vitro; no momento da transferência dos embriões, estes são colocados no útero de uma segunda mulher, amiga ou familiar. Se a lei for integralmente cumprida, quando nascer, a criança será filha do casal, dos pontos de vista biológico e legal.
Via Público