Moinho do Cu Torto, Évora - era aí que tínhamos encontro marcado. Augusto Vieira, da Confraria da Moenga, já estava à nossa espera junto ao velho moinho de 1893, entretanto recuperado e hoje situado junto ao Restaurante O Moinho, onde vamos comer a açorda à alentejana feita por Ludgero Salvador. "Houve aqui um moleiro que era coxo, e o moinho ficou com essa alcunha", explica Vieira sorrindo.
Mas se são Ludgero e a mulher quem cozinha, quem faz as despesas da conversa é Augusto Vieira, que vem até munido de um grande livro antigo - "esta edição já não se encontra em lado nenhum, ou então vendem-na caríssima", garante. Trata-se de Através dos Campos, de José da Silva Picão, uma autêntica bíblia da vida nos campos alentejanos, com uma camponesa de ar saudável a sorrir na foto sépia da capa.
Vamos então ver o que diz a bíblia sobre a açorda, o único prato do Alentejo que chegou aos 21 finalistas do concurso para escolher as sete maravilhas da gastronomia portuguesa. Segundo Silva Picão, só há uma, "a clássica", ou seja, a açorda de alho, que era o que os homens comiam nas pausas dos trabalhos do campo. "O almoço consta ordinariamente de açorda com azeitonas. Da clássica açorda alentejana, cujo caldo o abegão [um dos trabalhadores agrícolas] prepara num instante, lançando a água a ferver sobre os barranhões, onde o cozinheiro depôs os temperos - azeite e sal picado com alho, poejos, coentros e pimentão".
Faltam apenas "as sopas", o pão cortado aos bocados. "Em seguida, cada qual puxa da navalha e todos passam a migar o pão para os alguidares, até mais lhe não caber." Convém, desde já, esclarecer aqui uma questão de linguagem: aquilo a que noutras zonas do país se chama "açorda" é aquilo a que os alentejanos chamam "migas", e nada tem a ver com a açorda à alentejana. Esta é feita com pão migado, a que os alentejanos chamam "sopas". A sopa não é, portanto, o caldo, mas sim o pão que lá se põe dentro. E mais uma coisa, sublinha o nosso anfitrião: "Esta é uma sopa que não é cozinhada, não vai ao lume. É apenas escaldada."
Os camponeses chamavam ao que comiam nos campos "a açorda com a mão no bolso", conta Augusto Vieira. "Era comida sem mais nada, só com azeitonas. Mais tarde foi sendo enriquecida, com o ovo, por exemplo, porque era uma coisa fácil de encontrar no campo, e depois com o bacalhau, nas famílias mais ricas."
A diferença do poejo
Aquela que está a ser preparada na cozinha do Moinho é riquíssima comparada com a da "mão no bolso" - Lugdero decidiu darnos uma açorda com pescada e amêijoas, em vez de bacalhau. Mas, seja o que for que se lhe acrescente, o que faz realmente o sabor do prato é o alho e os coentros. E hoje, estamos com sorte, vai ter também poejo, que nem sempre é fácil de encontrar.
"O poejo nasce no Alentejo espontaneamente e só há em certas alturas. Agora só há praticamente poejos secos. Quando começa a chuva, voltam", explica Augusto Vieira. Uma das iniciativas da Confraria da Moenga foi identificar pratos típicos da cozinha alentejana que usam ervas bravas comestíveis - é assim que (re)aparecem pratos como a poejada com bacalhau, a sopa de feijão com catacuses, a sopa de beldroegas, o pastelão de espargos-bravos ou a sopa de grãos com carne e cardos.
As migas de espargos, por exemplo, foram o outro prato que a confraria candidatou ao concurso das maravilhas da gastronomia, mas que não chegou às 21 finalistas.
Via Público