Percentagens de gordura, de humidade, de proteína - fazer alheira certificada é trabalho de rigor, pequenos ajustes, uma carne de porco mais saborosa, um pouco mais de galinha... O alho e o azeite são absolutamente essenciais. Mas tudo começa numa padaria.
Estávamos preparados para o cheiro forte a carnes e a fumado quando entrámos na fábrica das Alheiras Angelina. E, de facto, ele aguardava-nos, lá mais para a frente. Mas, antes disso, chegou um outro cheiro, surpreendente, a farinha e a pão quente acabado de fazer. E foi para uma enorme padaria que Sónia Carvalho, a proprietária, nos convidou a entrar.
O pão é a base da alheira, e a maior parte das fábricas em Mirandela tem padaria própria. "Tem que ser feito de forma adequada", explica Sónia Carvalho. "Com pouquíssimo fermento e baixo teor de sal, de forma a que não haja levedura dentro da alheira." Durante o dia, o pão que sai deste padaria é todo usado no fabrico das alheiras. De noite, é pão para venda ao público.
Sónia tinha pensado ser médica mas, por razões várias, acabou por ficar à frente do negócio fundado pelos pais (Angelina era o nome da mãe) e que fabrica as alheiras de Mirandela que ganharam este ano a Medalha de Ouro no Concurso Nacional de Enchidos, Ensacados e Presuntos, em Santarém.
Esta é uma alheira certificada (só existem sete produtores certificados de alheira de Mirandela), e isso tem muito que se lhe diga. Vamos seguir Sónia, que vai explicando. O processo começa com a lavagem das carnes de galinha, porco, peru e caça (todas de fornecedores nacionais, sendo a carne de porco da raça bísaro). Passamos depois pela zona em que o pão, saído da fábrica ali ao lado, é cortado em fatias, e entramos numa sala em que o calor da cozedura das carnes em quatro grandes panelas nos chega imediatamente à cara. "Toda a carne é desfiada à mão, e o toucinho é triturado à parte, numa máquina", descreve Sónia perante os vários recipientes com carnes que nos rodeiam.
Um homem vai colocando a água da cozedura sobre o pão em fatias para este amolecer, e o fumo sobe no ar. Entra tudo para um grande recipiente onde o pão se mistura com as carnes, sobre as quais são lançados o piripiri, o colorau e a pasta de alho. É daí que sairá a massa das alheiras.
Pode ser que, no passado, tudo isto fosse feito nas cozinhas das casas ao gosto de cada um. Hoje obedece a um rigoroso caderno de encargos que tem que ser cumprido para se obter o selo de certificação - tem que se respeitar uma determinada percentagem de proteínas, outra de gordura, outra de humidade. "A alheira de Mirandela não é toda igual", esclarece Sónia. "Há diferenças nos tipos de carne, nos condimentos que se usa. Nós, por exemplo, vamos buscar as proteínas mais à carne de galinha, outros fazem de outra maneira." E tem de ser galinha velha, porque é uma carne que necessita de mais tempo de cozedura e "dá um maior teor de proteína".
Aliás, vêm aí alterações no caderno de encargos, que é elaborado pela Associação Comercial e Industrial de Mirandela. Vai ser aumentada a percentagem de humidade, por exemplo. "A alheira certificada tem vindo a sofrer ligeiras alterações. Mas nós também somos críticos de nós próprios". Vão provando e aumentando isto, reduzindo aquilo, sempre à procura do sabor mais adequado. O primeiro caderno de encargos exigia que as alheiras fossem muito mais secas, mas "o mercado rejeita", explica. "Depois, há cerca de um ano, fizemos a introdução do porco bísaro, que é uma carne mais fibrosa e com melhor paladar, mais adulta, e o sabor melhorou muito."
Fala-se muito das carnes, mas a verdade é que, diz Sónia, "os sabores de eleição são o azeite e o alho". Nenhuma alheira fica digna desse nome se o azeite e o alho não forem bons. E, depois, é preciso gerir o que o mercado quer - ou o que o mercado está disposto a pagar. "As pessoas procuram cada vez mais alheira mais barata e com qualidade". Por isso, as Alheiras Angelina vendem muito mais a chamada "alheira corrente", o que, na perspectiva de Sónia, "é mau para a imagem da alheira", porque as pessoas acabam por a tomar pela certificada.
O problema é muito semelhante ao do queijo da serra - é preciso saber procurar o selo de certificação para distinguir a verdadeira alheira de Mirandela da alheira comum (que pode também ser feita em Mirandela, mas que não leva azeite e tem mais gordura de toucinho). "Antigamente, podia-se fazer alheira de Mirandela em todo o lado, até no Brasil". Agora não é assim, mas toda a diferença está num selo pequeno que passa despercebido à maioria das pessoas - o que vale é que a designação "tipo Mirandela" não é autorizada, para evitar as colagens abusivas.
Já estamos na sala onde é feito o enchimento das alheiras, em tripa de vaca salgada e passada depois por água para retirar o sal. A massa da alheira entra num funil e vai sendo despejada para dentro da tripa. As funcionárias separam depois as alheiras já cheias, que seguem para as estufas, onde ficam a secar durante quatro a cinco horas a uma temperatura média de 65 graus. Espreitamos para o fundo da estufa e lá em baixo está o fogo a arder, com lenha de oliveira e carvalho. Sónia explica que "aqui há mais calor do que fumo", ao contrário das estufas de fumeiro, usadas para a linguiça e o salpicão.
Conta-se (mas não se sabe se é verdade ou mito) que a alheira foi uma invenção dos judeus, que, para escapar à Inquisição, fazendo-se passar por cristãos novos, fabricavam enchidos como qualquer cristão. A diferença é que não lhes punham carne de porco, mas sim várias carnes diferentes, envolvidas pela massa de pão. "Como lhe punham muito azeite, a Inquisição julgava que era a gordura do porco". Era tão bom que os cristãos quiseram imitar, só que lhe juntaram a incontornável carne de porco.
Mas também se diz, conta Sónia, que a alheira não é exactamente de Mirandela, mas ganhou essa fama por ser em Mirandela a estação de comboio de onde partiam as alheiras feitas em vários sítios da região. "Todas as semanas, saíam para o Porto, de comboio, caixas de madeira que levavam as alheiras e que tinham o carimbo de Mirandela."
Lenda ou realidade, o facto é que as alheiras acabavam sempre no prato, fritas e acompanhadas geralmente por grelos e batatas cozidas. E se antigamente só se comiam no Inverno, agora, garante a proprietária das Alheiras Angelina, Agosto, com a chegada dos emigrantes, é o mês em que se vendem mais. Além disso, ganhou estatuto gourmet: nos últimos tempos, não há chefe de restaurante na moda que não tenha inventado uma forma original de cozinhar alheira.
Via Público