A legislação portuguesa, depois da aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, passou a viver com uma aberração: homossexuais solteiros podem adotar uma criança, heterossexuais sozinhos podem adotar uma criança, um casal de homossexuais não pode adotar uma criança. Não há nenhum argumento racional - mesmo para os que defendem que as crianças precisam sempre de um modelo masculino e feminino - para defender o absurdo legal em vigor. Se uma criança precisa de um pai e de uma mãe (ao ponto de ser preferível ficar institucionalizada se não os tiver), então a adoção por famílias monoparentais teria de deixar de existir.
Portugal transforma-se numa raridade: permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo sem permitir a adoção. Só vejo um raciocínio possível: façam lá as vossas porcarias mas não metem crianças ao barulho. Ou, numa versão mais benigna, demasiados deputados aceitam o casamento entre pessoas do mesmo sexo mas têm vergonha da sua posição. Precisaram de garantir uma exceção na lei para que existisse uma qualquer diferença entre casais homossexuais e casais heterossexuais. E as crianças institucionalizadas foram usadas neste expediente político.
Adotar não é um direito. É o superior interesse da criança que deve presidir a todas decisões relacionadas com a adopção. O problema é que, com esta decisão, que não tem qualquer base científica ou coerência jurídica, as crianças ficaram a perder. Repare-se que permitir a adoção, seja por casais heterossexuais, seja por casais homossexuais ou seja por indivíduos isolados, não garante, à partida, que o candidato a adotante consegue adotar. Serão os técnicos a avaliar se estão em condições de o fazer. O que a lei faz é excluir, à partida, por mero preconceito, milhares de candidatos. Muitos deles com excelentes condições emocionais para o fazer. Isto quando há milhares crianças institucionalizadas. O legislador colocou os seus preconceitos à frente do interesse da criança. Foi negligente.
O argumento da estigmatização da criança adotada por casais homossexuais não colhe. Os filhos de pais divorciados viveram, durante muitos anos, esse preconceito. E, se os pais souberam lidar com isso, aí estão saudáveis e felizes. Os filhos de casais racialmente mistos também. Os filhos de homossexuais, que são muitos, ainda o vivem. A ideia de que só pode adotar quem corresponda, perante os preconceitos de uma sociedade, ao casal tradicional (cada vez menos habitual), é absurda. Deve poder adotar quem esteja em condições para educar uma criança, dar-lhe o afeto e a atenção que ela precisa e fazer dela um adulto tão feliz e saudável como a maioria das pessoas. Não há pais perfeitos. E não me parece que orientação sexual dos pais seja um factor especialmente relevante para aferir da funcionalidade ou disfuncionalidade de uma família.
De todos os votos, o mais difícil de explicar foi o do PCP. Ao lado da maioria de direita (e mesmo nela houve votos divergentes) e de uma pequena minoria de deputados do PS, os comunistas deram o pior argumento possível: a sociedade não está preparada para esta decisão. Em português corrente: não estamos preparados para corrermos o risco da impopularidade de uma decisão que até consideramos correta.
O que me interessa saber é se as crianças adotadas e os pais adotantes estão preparados. E se é justo que tantos seres humanos passem os primeiros anos da sua vida em instituições, a que nunca poderão chamar de lar, para satisfazer preconceitos sem qualquer base científica. Cabe aos deputados fazer o que a sua consciência determina. Se se limitassem a ser cataventos e a ir sempre uns passos atrás da sociedade muitas coisas que hoje temos como fundamentais para a dignidade humana não estariam garantidas na lei.
Sabíamos que o homem mais rico de Portugal não era rico. Era apenas um trabalhador, nas suas próprias palavras. As Finanças foram ver as contas deste humilde trabalhador - o mesmo que, ainda a crise não tinha a começado, já estava a fazer despedimentos preventivos nas suas empresas - e descobriu umas irregularidades. Quer-lhe cobrar mais 750 mil euros de IRC. E ele, claro, que é apenas um trabalhador, recusa-se a pagar.
Parece que os Serviços de Inspeção da Direção de Finanças de Aveiro descobriram centenas de milhões de euros em despesas pessoais na empresa Amorim Holding2. Entre elas, viagens da família a destinos turísticos, massagens, contas de mercearia e tampões higiénicos que, só não sabe quem não passou por isso, são fundamentais para o desempenho profissional de Américo Amorim. Na empresa mãe deste simples trabalhador encontrou 3,1 milhões de despesas indevidas.
Quero manifestar aqui a minha solidariedade com Américo Amorim. É escandaloso que, com tanta gente rica a fugir aos impostos, vão atrás da arraia miúda. E nada escapa a este espírito pidesco. É que um homem nem pode passar por dias difíceis? Diz-se que os artigos de higiene feminina que usou para fugir ao fisco são de boa qualidade quando não se sentem e não se veem. É como os impostos do senhor Amorim: ele não os sente e nós não os vemos.
Publicado no Expresso Online
Via Arrastão
As vitórias e as derrotas nos debates fazem-se, grande parte das vezes, com truques. E sobretudo truques visuais. No debate entre Portas e Sócrates isso foi evidente. Sócrates apresentou uma pasta vazia para mostrar o programa do CDS, Portas, que foi um dos pioneiros destes números em televisão, mostrou um gráfico com o aumento da dívida pública portuguesa em comparação com a dos restantes países europeus.
Cabe aos comentadores e aos jornalistas fazer mais do que avaliar a performance de cada um. Devem analisar o conteúdo para lá do foguetório. E mostrar o que o foguetório esconde. Um exemplo: no colorido gráfico de Paulo Portas, em que se analisava a evolução de 2005 a 2010, faltavam vários países europeus. Dirão que não podiam lá estar todos. Mas entre os que faltavam estavam, nem mais nem menos, a Grécia e a Irlanda. Só aqueles que, tal como Portugal, ficaram em pior situação nos últimos três anos, tendo sido por isso obrigados, como nós, a aceitar uma intervenção externa. E faltavam ainda, segundo o gráfico da Eurostat que ele copiou e alterou, o Reino Unido e a Letónia. Ou seja, Portas apagou da fotografia todos os que, tendo um aumento da dívida superior a Portugal, lhe estragavam o boneco. Este truque, que torna aquele gráfico imprestável para qualquer discussão séria sobre a situação do País e da Europa, foi elogiado por quase todos os comentadores.
Não é um exclusivo de Paulo Portas, apesar de não ser a primeira vez que manipula gráficos em debates. O problema é outro: não haver quem faça o escrutínio dos factos apresentados.
Portas pode ter sido habilidoso ao escolher tão bem os países que estavam naquele gráfico. Mas a sua habilidade não faz dele um bom político, no que de mais relevante tem a função. Nem é útil para os cidadãos formarem uma opinião sobre as razões do estado em que estamos e as melhores soluções para sairmos deste buraco.
Imagens roubada daqui.
Daniel Olliveira
Via Arrastão
Fernando Nobre vai ser cabeça de lista do PSD no circulo de Lisboa. Contra um homem de convicções - mesmo que não sejam as minhas - como Ferro Rodrigues, o PSD aposta num ziguezagueante populista. O ex-candidato estava no mercado e Passos Coelho pagou o preço que lhe foi pedido: dar-lhe a presidência da Assembleia da República. As contas foram de merceeiro: Nobre vale 600 mil votos. Errado. Se os votos presidenciais nunca são transferíveis para legislativas, isso é ainda mais evidente neste caso. Todas as vantagens competitivas de Nobre desapareceram quando ele aceitou este lugar.
O PSD vai perder mais do que ganha. Porque este convite soa a puro oportunismo. Porque quando Fernando Nobre começar a falar o PSD vai ter de se virar do avesso para limitar os danos. Porque a esmagadora maioria dos eleitores de Nobre nem com um revólver apontado à cabeça votará em Passos Coelho. Porque ele afastará eleitorado que desconfia de gente com tanta ginástica política.
Quem também não fica bem na fotografia é Mário Soares, que, na última campanha, por ressentimento pessoal, alimentou esta candidatura. Fica claro a quem ela serviu. Agora veio o agradecimento.
Quanto a Fernando Nobre, é tudo muito banal e triste. Depois da campanha que fez, este é o desfecho lógico. Candidatos antipartidos, que tratam todos os eleitos como suspeitos de crimes contra a Pátria - ainda não me esqueci quando responsabilizou Francisco Lopes pelo atual estado de coisas, apenas porque é deputado - e que julgam que, por não terem nunca assumido responsabilidades políticas, têm uma qualquer superioridade moral sobre os restantes acabam sempre nisto. A chave que usam para abrir a porta da sala de estar do sistema é o discurso contra o sistema. Não querem "tachos", dizem eles, certos de que todos os eleitos apenas procuram proveitos próprios. Eles são diferentes. Depois entram no sistema para mudar o sistema, explicam. E depois ficam lá, até vir o próximo com o mesmo discurso apontar-lhes o dedo. É tudo tão antigo que só espanta como tanta gente vai caindo na mesma esparrela.
Quem tem um discurso sem programa, sem ideologia, sem posicionamento político claro e resume a sua intervenção ao elogio da sua inexperiência política tem sempre um problema: só é diferente até perder a virgindade. E quando a perde fica um enorme vazio. Porque não havia lá mais nada. Porque a política não se faz de bons sentimentos, faz-se de ideias, projetos e programas políticos. Ideias, projetos e programas que resultam do pensamento acumulado pela experiência de gerações, que se vai apurando no confronto e na tentativa e erro. A tudo isto chamamos ideologias. Quem despreza a ideologia despreza o pensamento. Quem despreza o pensamento despreza a política. Quem despreza a política dificilmente pode agir nela com coerência e dignidade.
Para além do discurso contra os políticos, este político teve outra bandeira: as suas preocupações sociais. Nada com conteúdo. Para ele bastava mostrar o seu currículo de ativista humanitário. E a quem aceita ele entregar a sua virginal e bondosa alma? Ao candidato a primeiro-ministro mais selvaticamente liberal que este País já conheceu. Não sou dos que acham que toda a gente tem um preço. Mas ficámos a saber qual é o de Fernando Nobre: um lugar com a dimensão da sua própria vaidade.
Tudo isto tem uma vantagem: é uma excelente lição de política para muita gente. Quem diz que não é de esquerda nem de direita, quem tem apenas a sua suposta superioridade moral como programa e quem entra no combate político desprezando quem há muito o faz nunca é de confiança. Um dia terão que se decidir. E Nobre decidiu-se: escolheu a direita ultraliberal em troca das honras de um lugar no Estado. Na hora da compra, os vaidosos têm uma vantagem: saem mais baratos. Não precisam de bons salários ou de negócios. Basta dar-lhes um trono e a sensação de que são importantes. Vendem a alma por isso.
Via Expresso
Depois das aventuras na bolha imobiliária e da crise do subprime, as empresas financeiras ficaram à beira do colapso. Para pagar as suas irresponsabilidades os Estados foram chamados a intervir. A primeira ajuda fez-se através da nacionalização do prejuízo. A Irlanda foi mesmo obrigada a aceitar ajuda externa e a consequente destruição da sua economia para impedir que a falência dos bancos nacionais espalhasse o pânico na city londrina. Em Portugal, a nacionalização do BPN fez-se de forma cirurgica. O Estado ficou com os buraco e, generoso, deixou o que valia alguma coisa - a SLN - nas mãos dos acionistas.
Quem esperava que, depois disto, os responsáveis fossem punidos rapidamente percebeu que não estavamos a reformar um sistema que põe as vidas de milhões de pessoas à mercê da ganância de jogadores. Estavamos a salvar esse sistema.
Salvo o que estava prestes a falir com os dinheiros dos contribuintes, ainda faltava ir buscar o resto ao pote público. Começou então o ataque às dívidas soberanas. Aproveitando os absurdos institucionais europeus e a certeza de que na Europa cada um trataria apenas de si, as economias mais frágeis do euro foram a vítima preferencial. O que não foi sacado através das ajudas públicas foi-se buscar através de juros usurários. Basicamente, as economias mais frágeis passaram a trabalhar para pagar uma mesada à banca, pedindo emprestado para pagar os juros. E quanto mais pedem mais os juros aumentam, numa espiral que só acabará quando todo o sangue for sugado.
Tal como aconteceu com subprime, as agência de notação têm um papel central no assalto. Se antes sobrevalorizavam lixo, agora sobrevalorizam o risco. A pressão política para o pedido de "ajuda" externa não é mais do que o apelo para que campangas venham buscar o dinheiro à força. E a extorsão faz-se à custa do Estado Social. O dinheiro que os Estados gastam em saúde, educação, pensões e serviços públicos tem de ser transferido para pagar juros impossíveis. Trata-se de uma transferência de recursos públicos que ainda não acabou. Ela chegará ao fim com a destruição do Estado Social. A esse processo dá-se o pomposo nome de "reformas estruturais".
Portugal, Grécia, Irlanda e Espanha estão a ser abusados por um novo tipo de máfia que, na ausência de poderes públicos e de políticos corajosos, deixam um rasto de destruição por onde passam. Resta às vítimas três possibilidades: ou entregam tudo o que têm, ou pedem proteção aos mafiosos para que o roubo se faça de forma mais ou menos ordenada ou dão, em conjunto, um murro na mesa.
A solução começa com duas palavras: "não pagamos". Quando elas forem ditas, em conjunto, por estes quatro países, a Alemanha e a União Europeia mudam, em apenas um minuto, de atitude. É provável que os contribuintes alemães não estejam dispostos a pagar as dividas dos outros. O que eles não sabem é que, quando participam na "ajuda" aos países periféricos, estão a pagar o bailout da banca alemã. Ou seja, estão a pagar a salvação da sua própria economia.
Só no dia em que estes países disserem que, nestas condições, não dão nem mais um tostão para este peditório se começará a discutir a reestruturação da dívida. Não se trata de um favor. Trata-se de pagar o que se deve em condições aceitáveis. Trata-se de um ato de justiça. Pagar com juros decentes e num tempo praticável.
Quando quiseram obrigar a Irlanda a subir o seu IRC - bem abaixo da média europeia - ela fez esta ameaça. O recuo europeu foi imediato. Tivessem os governantes irlandeses tanta coragem para defender os direitos sociais como tiveram para defender o seu dumping fiscal e os seus concidadãos estariam hoje bem melhor.
A escolha que estes Estados têm de fazer é simples mas arriscada. Simples porque resulta de uma revolta legitima: não temos de pagar, com o nosso trabalho, através de juros impensáveis, as irresponsabilidades de quem andou a brincar com o fogo. Arriscada porque vão continuar, como qualquer Estado, a precisar de financiamento. Mas é a única opção: obrigar a Europa a defender os Estados que aceitaram entrar no euro. Nem que seja pela ameaça. Ou isto, ou a destuição por décadas de várias economias.
Ontem, quando assinalava os cinquenta anos do início da Guerra Colonial, Cavaco Silva disse esta frase: "Importa que os jovens deste tempo se empenhem em missões e causas essenciais ao futuro do país com a mesma coragem, o mesmo desprendimento e a mesma determinação com que os jovens de há 50 anos assumiram a sua participação na guerra do Ultramar".
Sobre esta frase, ficam apenas algumas pequenas perguntas. Considera o chefe de Estado que a guerra colonial (repito: "colonial") foi essencial para o País? É comparável aos desafios que temos pela frente? Ou considera que foi um erro histórico? Ou não faz ideia e as palavras limitam-se a brotar da sua boca como se não quisessem dizer rigorosamente nada? Consegue o Presidente da República distinguir a coragem e a determinação exigidas num ato voluntário de cidadãos livres, da coragem e da determinação exigidas numa participação forçada numa guerra decidida por um governo ilegítimo? Tendo sido exigida coragem para sobreviver a uma guerra que o País não queria, ela será o melhor exemplo para dar ânimo aos jovens de hoje? Ser "carne para canhão" é o que o nosso Presidente pede aos jovens portugueses? Ser vítima da cegueira do poder, é o desígnio desta geração?
A que desprendimento se refere Cavaco Silva? Ao de fazer tudo para sobreviver numa guerra estúpida e injusta ou, pelo contrário, considera o Presidente que os jovens do seu tempo foram para a Guiné, Angola e Moçambique porque, desprendidos dos seus próprios interesses, acreditavam naquela "missão"?
Talvez mais importante: consegue o Presidente da República Portuguesa, eleito em democracia e liberdade, perceber a enorme gravidade política da comparação que fez? Resta saber se é apenas tão despolitizado que nem se apercebe do significado das coisas que diz ou se as diz por convicção. Em qualquer um dos casos é preocupante.
Tantos anos de democracia, e temos em Belém um Presidente que repete, com um ar cândido de quem diz uma banalidade, a propaganda do Estado Novo. Não tenho por hábito comparar nenhum político eleito a quem nos governou sem nunca o ser. Mas Cavaco Silva escusava de se empenhar tanto para facilitar comparações.
Por mim, espero que os jovens não precisem nem da coragem, nem da determinação que precisaram os que morreram ou ficaram com marcas para vida numa guerra inútil decidida por um ditador parado no tempo. Foi para que tal não lhes fosse exigido que homens como Salgueiro Maia (que Cavaco nunca soube respeitar) fizeram, com coragem, determinação e desprendimento, a revolução que permitiu a Cavaco Silva ser eleito Presidente.
Via Expresso