Caro funcionário da República, hoje sou apenas o portador de uma mensagem do meu primo (sim, as bestas reacionárias também têm primos). O meu primo trabalha numa empresa que, como tantas outras, enfrenta imensas dificuldades. A hipótese da falência deixou de ser uma coisa longínqua e, por arrastamento, o desemprego passou a ser um cenário possível. E é assim há muito tempo. Há muito tempo que este pesadelo está ali ao virar da esquina. Portanto, a mensagem do meu primo começa assim: V. Exa. está disponível para trocar o seu vínculo-vitalício-ao-Estado por um contrato-ameaçado-pela-falência-e-pelo-desemprego? Quer trocar 12 meses certíssimos por 14 meses incertos?
Depois, o meu primo gostava de compreender uma coisa. Se a empresa dele fechar, ele cairá no desemprego e terá de procurar emprego novo. Mas se a repartição pública de V. Exa. fechar, o meu caro funcionário da República irá para o "quadro de excedentários". Por que razão V. Exa. tem direito a esta rede de segurança que mais ninguém tem? Porquê? Em anexo, o meu primo gostava de propor outra troca: V. Exa. está disponível para trocar a ADSE pelo SNS? Sim, porque o meu primo tem de ir aos serviços públicos (SNS), mas V. Exa. pode ir a clínicas e hospitais privados através da ADSE. Quer trocar? E, depois de pensar na ADSE, V. Exa. devia pensar noutro pormenor: a taxa de absentismo de V. Exa. é seis vezes superior à das empresas normais, como aquela do meu primo. E, ainda por cima, o meu primo não tem uma cantina com almoços a 3 euros, nem promoções automáticas. Mas vai ter de trabalhar mais meia-hora por dia.
Para terminar, o meu primo está muito curioso sobre uma coisa: das milhares e milhares de famílias que deixaram de pagar a prestação da casa ao banco, quantas pertencem a funcionários públicos? Quantas? Eu aposto que são pouquíssimas. Portanto, eu e o meu primo voltamos a colocar a questão inicial: V. Exa. quer trocar? V. Exa. quer vir trabalhar para uma empresa real da economia real que pode realmente entrar em falência e atirar os empregados para a realidade do desemprego? V. Exa. quer trocar a síndrome do funcionário público pela síndrome do desemprego?
Olhando para as reações das corporações que vivem em redor do Estado, até parece que são todos uns anjinhos, até parece que durante todos estes anos não existiram abusos, até parece que durante todos estes anos as corporações estatais não abusaram do dinheiro do contribuinte. É sempre assim nesta terra de deus que tem o corporativismo como instinto: a culpa é sempre dos políticos e nunca das corporações e dos sindicatos, que estão entrincheirados na defesa enlouquecida dos direitos adquiridos. Entretanto, eu continuo a pagar impostos e a minha mãe continua sem médico de família.
Ora, já que estamos a falar de direitos adquiridos, eu gostava de fazer uma pergunta: um salário anual de 750 mil euros também é um direito adquirido? 744 mil euros, para sermos exactos. Este foi o montante que um médico algarvio conseguiu arrecadar em 2009 (Jornal de Notícias, 15 de Outubro). Eu já fiz várias contas, e não consigo encaixar este montante. 744.000 a dividir por 14 dá 53.000. É muito, não é? Então agora acrescentem um novo elemento à fórmula: o salário base do dito médico é de 5523 euros. Agora expliquem-me como é que se salta de 5500 euros para 53.000 euros mensais. Como? Horas extraordinárias? Com certeza. Mas, caramba, este médico trabalhou todas as horas de 2009? Não foi a casa? Não dormiu durante aquele ano? Entretanto, eu continuo a pagar impostos e a minha mãe continua sem médico de família.
Confesso que isto não me sai da cabeça: como é que um médico leva para casa três quartos de um milhão de euros num ano? Como? Que sistema é este? Será isto normal dentro do SNS? Mas, atenção, estamos em Portugal, portanto, não se pode falar disto, é preciso mostrar respeitinho pelos senhores doutores, é preciso aceitar que as corporações são compostas por seres angelicais. E, entretanto, eu continuo a pagar impostos e a minha mãe continua sem médico de família.
Via Expresso
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