Uma gabardine preta de verniz, um vestido branco de silhueta estruturada ou uma clutch com brilhantes são peças aliciantes ao ponto de fazer uma mulher contornar as regras. Foi o que fizeram Joana, Paula e Luísa diante de peças que lhes despertaram o desejo e as fantasias de as imaginar no corpo, combinando com isto ou aquilo, sem margem para errar ou pagar.
Levar para casa, usar e fazer um brilharete é, em certos casos, possível mesmo quando não se está disposto a despender do valor da etiqueta. Traduzindo: comprar, usar e devolver. Há, de facto, quem o faça e a hiperactividade da língua inglesa já se encarregou do respectivo neologismo:shopgrift . Um termo que, sem ser muito conhecido, refere-se a uma prática que, de acordo com alguns estudos, é levada a cabo por uma em cada três mulheres.
As indecisões de Joana
Joana tem 36 anos e nunca tinha ouvido falar neste estrangeirismo. Contudo, há nove anos que lhe acontece gostar de uma peça de roupa, comprá-la e devolvê-la na loja em troca do dinheiro depois de a ter usado - é umashopgrifter. "Há peças de que gosto e há outras em que penso ‘se calhar dá para vestir uma ou duas vezes e depois vou entregar'", confessa. Compra numa loja e devolve, geralmente noutra, para não dar nas vistas. Joana guarda sempre as etiquetas e os talões, tanto nos casos em que sabe desde o início que aquela blusa não veio para ficar, como quando até faz tensões de ficar com o casaco, mas acaba por arrepender-se. Até hoje, nunca lhe recusaram uma devolução.
A maioria das lojas dá ao cliente trinta dias para devolver artigos, exigindo apenas que as peças se encontrem no mesmo estado em que foram adquiridas e o talão da compra. Uma política facilitadora tendo em conta que o decreto-lei das garantias de 2003, reforçado em 2008, apenas obriga os estabelecimentos a devolverem o dinheiro no caso de a peça apresentar defeito.
"Normalmente ponho a roupa uns dias ao ar, na janela, para o cheiro desaparecer. No caso das calças, dá-se um jeitinho com o ferro", conta Joana entre risos. São sobretudo peças mais básicas, como blusas e camisolas, que devolve depois de usar. Fá-lo sempre em lojas mais baratas, onde acredita ser mais fácil ter o dinheiro de volta sem ter que dar grandes explicações. "Em lojas mais caras é mais difícil e, por vezes, também não devolvem o dinheiro. Trocam por outra coisa ou dão um vale, por isso, o dinheiro acaba por ficar empatado na mesma", explica.
Um vestido branco com estrelas pretas, de 60 euros, foi das últimas peças que devolveu depois de usar num jantar de aniversário (isto sem contar com uma gabardine preta de verniz que pensou levar a um concerto, mas que acabou por não vestir). Joana justifica-se com uma indecisão crónica - um "gostar" seguido muitas vezes de um "deixar de gostar". O vício não é algo que partilhe, nem com os amigos mais chegados. "Sei que não é a coisa mais correcta de se fazer, mas na altura penso ‘gostava de ter aquilo' e isso sobrepõe-se".
Numa sondagem feita em Março deste ano pelo site VoucherCodes a três mil britânicos, 28% dos inquiridos admitiram já ter devolvido uma peça de roupa depois de a usar, enquanto 7% confessaram fazê-lo com alguma regularidade. Um outro estudo, de 2009, realizado também no Reino Unido pela empresa OnePoll e divulgado pelo Daily Mail, mostra que uma em cada três mulheres já devolveu um vestido depois de o usar. Esta sondagem diz ainda que um décimo das consumidoras não hesita em fazê-lo sempre que vai sair à noite, a um casamento ou simplesmente jantar fora.
A primeira vez de Luísa
Foi para uma gala da faculdade, há um mês atrás, que Luísa, de 18 anos, teve a sua primeira experiência enquanto shopgrifter. Uma amiga disse que "era na boa" e a clutch bege com brilhantes ficava mesmo a matar com o seu vestido. "Era um pouco chato estar a comprar uma mala que depois não viria a usar tão depressa", conta. Antes nunca tinha sequer pensado nessa hipótese e desconhecia até que fosse tão fácil devolver roupa já usada. A clutch tinha custado só 18 euros, mas ainda assim, os cuidados com a peça estenderam-se pela noite dentro. "Durante o jantar estava com um bocado de medo de que ela se estragasse. Na discoteca, guardei-a no bengaleiro em vez de a deixar nos sofás", afirma com pragmatismo.
Luísa voltou à loja, um pouco nervosa. A etiqueta tinha estado escondida numa pequena bolsa dentro da mala e, por isso, ficara dobrada. O alívio chegou quando o funcionário do balcão acedeu ao pedido de devolução sem levantar questões e sem, aparentemente, suspeitar de nada.
À excepção de roupa interior e de peças adquiridas em época de saldos, devolver e ter o dinheiro de volta não é das tarefas mais difíceis quando falamos de grandes superfícies comerciais. António trabalhou durante cinco anos numa loja do grupo Inditex onde o prazo de 30 dias, a apresentação do talão de compra e da peça intacta são os requisitos para conseguir reaver o dinheiro que se tinha pago por um artigo. Enquanto ex-funcionário, reconhece que muitos abusavam deste facilitismo. Sobretudo em blusas e T-shirts, era flagrante que, em alguns casos, a roupa já tinha sido usada. "Por vezes verificávamos se a roupa cheirava a perfume ou a tabaco", conta. Contudo, raramente houve provas que sustentassem uma argumentação com o cliente, daí que, desde que a peça tivesse a etiqueta e não revelasse dano, era feita a devolução. "Chegávamos a facilitar para o cliente não ficar descontente. Outras vezes, por se tratar de um cliente habitual, fechávamos os olhos".
Um discurso um tanto ou quanto diferente do de Manuela Saldanha, gestora da Loja das Meias. Aqui, onde o preço de um vestido compõe-se com três dígitos, as devoluções são casos extremamente raros e a palavra shopgrift, quando decifrada, chega a causar calafrios. "Nunca tivemos qualquer indício disso", afirma Manuela Saldanha. Há clientes que são já velhos conhecidos e, além disso, o atendimento é mais personalizado, algo que qualquer shopgrifter se esforçaria por evitar. "Falamos de um universo pequeno [de três lojas apenas], com muitos clientes fiéis há vários anos", completa.
Paula muda de atitude
Durante mais de dez anos Paula alimentou o vício de comprar para devolver, sempre na mesma loja, espaçosa e na berra. Tudo começou com uma camisola de malha azul escura que já tinha usado algumas vezes e, por isso, estava gasta e larga. Levou-a à loja, sem etiqueta nem talão, depois de terem passado mais de 30 dias sobre a compra. A princípio, pensou "que era mentira" quando viu que lhe estavam a devolver o dinheiro de uma camisola que, para todos os efeitos, estava velha. Depois disso, tomou-lhe o gosto. Chegou a devolver umas calças amarelas, depois de lhes ter feito bainhas, e até sapatos, tido como o artigo mais difícil de devolver após usar. Eram principalmente peças para o quotidiano, mas também, de vez em quando, para ocasiões especiais, como a blusa de padrão animal que vestiu num casamento. Há um ano atrás, um evento exigiu-lhe um vestido branco. Paula que não tinha nenhum, não fez disso um problema. O vestido custou-lhe 70 euros, dinheiro que dias depois voltava para a carteira.
"Nas lojas, por vezes desconfiavam, mas como tinha o talão e estava tudo em condições, eram obrigados a trocar o artigo porque não tinham como provar já tinha sido usado", afirma. Nota que agora os funcionários das lojas, ou pelo menos daquela, controlam muito mais. Mas não foi isso que a levou a deixar o hábito. Receios à parte, a consciência começou a pesar e a conter o impulso consumista. Paula, de 45 anos, pode hoje dizer que há um ano que não compra nenhuma peça com o intuito de a devolver pouco tempo depois.
Via Público