Tem de se dizer a verdade, defende Pedro Piedade. E a verdade é que "a sardinha que se come em Setúbal não é de Setúbal". Pedro sabe melhor do que ninguém o que está a dizer. Por volta da meia-noite, já está a telefonar para a Nazaré para saber como correu a pesca. Se lhe disserem que há peixe, sardinhas e carapaus, é o que lhe interessa, ele encomenda e põe-se a caminho para o ir buscar. Se lhe dizem que "ninguém está a fazer nada" no mar, então liga para o Algarve e lá vai, para ir buscar a meio caminho a sardinha do tamanho que os setubalenses gostam.
Às sete, já está no mercado de Setúbal para as vender se conseguir, dorme à tarde um bocado. E se estamos aqui a meio da manhã a discutir isto é porque a sardinha assada é um dos 21 pratos finalistas do concurso das sete maravilhas da gastronomia portuguesa e é identificada com a região de Setúbal.
O que Pedro está a dizer não significa que não haja sardinha no mar de Setúbal, nada disso. Há sardinha e os pescadores apanham-na. O que acontece é que são sardinhas maiores e essas vão para Lisboa. No fundo, há um problema de geografia e de sardinhas em Portugal. "Do Tejo para cima, querem a sardinha grande; do Tejo para baixo, querem-na pequena." E os vendedores de peixe, como Pedro Piedade, percorrem o país para norte ou para sul para tentar que a sardinha acerte com a geografia do gosto dos portugueses.
Pedro debruça-se na banca e apanha uma sardinha pequenita, e com a outra mão um carapau médio. "Está a ver? É mais ou menos esta a diferença", explica. De Lisboa para cima, as pessoas gostam de sardinhas com o tamanho de pequenos carapaus. A que Pedro está a vender hoje é de Portimão, porque o vento não deixou os pescadores da Nazaré saírem para o mar.
Mas que fique clara uma coisa: toda a sardinha, seja grande ou pequena, tem que ser gorda para ser boa. Já no outro dia tinhamos ouvido dizer aqui que "a sardinha deve ser como a mulher setubalense, pequenina e gordinha".
Estamos a aprender que há uma ciência para as sardinhas como para tudo, aliás. E ainda nem sequer falámos com Laura. Quando, perto do meio-dia, chegamos ao restaurante dela, o Ribeirinha do Sado, o lume já está pronto e o assador no seu posto, à espera dos primeiros pedidos. Laura é pequenina como as sardinhas de Setúbal, mas é uma força da natureza, com o cabelo sempre bem puxado para trás, preso numa trança, os gestos rápidos e nervosos de quem sabe que gerir um restaurante não permite distracções, mas sabe também que há sempre um tempo para dois dedos de conversa com os clientes que querem saber o que é que ela aconselha nesse dia.
O ouro dos pescadores
Laura pode ensinar-nos muito sobre sardinhas. Sentamo-nos numa mesa lá fora, e ela, que já tinha avisado que teria algumas coisas duras a dizer, dá uma notícia que desanima: "Sardinha boa já era. A sardinha nunca mais vai ser o que foi." Porquê? "Por causa do clima e da falta de preservação da espécie, aquilo a que se chamava o defeso, e que agora não se faz desde que as nossas águas foram entregues aos espanhóis, que apanham sardinha o ano inteiro."
O defeso começava no final do São Martinho, a altura da desova, em Novembro, e ia até ao final de Março era o período em que não se apanhava sardinha e ela tinha tempo de voltar a crescer. "A sardinha engordava e tomava gosto com as enxurradas da Primavera, as chuvas de Abril, que levavam a água das montanhas para o mar." Hoje "não há chuvas de Abril nem grandes tempestades" e não se respeita o defeso. Por isso, diz Laura, não se admirem por as sardinhas não engordarem.
Na praça de Setúbal, todos sabem disso: este ano, as sardinhas estão a demorar mais tempo a engordar. Passaram-se as festas dos santos populares e nada, as sardinhas ainda não estavam como deveriam. Laura diz que só começou a servi-las no restaurante a partir de Abril. Mas houve quem começasse antes, quando a sardinha era ainda muito magrita. E os clientes, que querem é comer sardinhas, vão aceitando mesmo quando a qualidade não é a que era no passado.
Antigamente, conta Laura, havia os tempos "dos créditos e das penhoras". Durante os meses em que se podia pescar, os pescadores apanhavam muito peixe e investiam em ouro o dinheiro que ganhavam. "Era por isso que as mulheres andavam sempre com os colares e os brincos de ouro, porque depois, no Inverno, quando vinha a fome, viviam da penhora do ouro e do peixe que tinham salgado."
No tempo em que havia quatro estações, e as chuvas vinham quando tinham que vir e o calor também, tudo tinha a ver com o calendário, continua Laura, enquanto os primeiros clientes começam já a chegar e o primeiro peixe começa a ser posto no lume. "Tem tudo a ver com o calendário. A Páscoa é em Abril e era tradição portuguesa nos dias de Páscoa fazer piqueniques com a esquilha [a sardinha muito pequena, ou petinga] frita com arroz de tomate, ou açorda, para se aproveitar o pão, que nessa altura ninguém deitava pão fora." E era a partir daí que a sardinha começava a engordar, até Novembro.
Agora, o que é que acontece? "A primeira sardinha que cá aparece, lá para meio de Março, é do Mediterrâneo", diz Pedro Piedade. Vem da zona de Barcelona, Tarragona, onde as águas são mais quentes e onde, por isso, as sardinhas aparecem mais cedo, iniciando o ciclo da engorda. "O primeiro peixe é apanhado pelos espanhóis."
Mal apanhado, na opinião de Laura, que se queixa de que, em vez de gelo, para manter o peixe, os espanhóis usam "um pó, um químico, que torna a sardinha moída, ardida, a escama perde-se toda, a espinha vem preta". Ela garante que para o Ribeirinha do Sado prefere gastar mais para ter sardinha melhor "chego a comprar um quilo ao mesmo preço de uma caixa que vem de Espanha e que traz quinze quilos."
Depois, a pouco e pouco, o peixe deixa o Mediterrâneo, chega ao Atlântico e inicia a subida da costa portuguesa. E começa a dança dos setubalenses a irem comprar sardinha à Nazaré e a mandarem a deles para norte.
"Um bom lume é básico"
Comprada a sardinha com o tamanho que cada um mais gostar, é assá-la, o que também implica saber. À volta da banca de Pedro Piedade, há quem fale da sardinha escorchada, que os setubalenses gostam de comer no São Martinho, aberta, escamada, sem cabeça e sem vísceras, e salgada para reduzir a gordura.
Mas é Laura quem nos vai explicar como se faz. "Criar um bom lume é básico. Começa-se a assar quando o carvão já está todo em brasa e não existe labareda, para não chamuscar o peixe. Um bom lume assa um bom peixe." É por isso que ela tem o carvão pronto, sem labaredas, ao meio-dia. Outra dica: o peixe deve ser virado poucas vezes. "Tem que ser grelhado como um bom bife". Quando está pronto de um lado (isso vê-se quando o olho se solta, criando uma geleia por baixo), vira-se, e quando o outro olho salta, pode seguir para a mesa.
E, mesmo já não sendo o que era, a sardinha continua a ser a rainha da festa. No mercado, vende-se mais do que todos os outros peixes; nos restaurantes, é o que os clientes mais pedem. Portugueses, mas também estrangeiros Laura já teve franceses que lhe pediram sardinhas cruas, que abrem para retirar os lombinhos e comê-los só com sal e limão.
Gorda, este ano, por enquanto, ainda não. "A gordura ela vai ter sempre, no período fértil", garante Laura. "Agora, o cheiro forte que tinha, isso não existe já..."
Via Público