Em 40 por cento dos transplantes de rins em que há dador vivo (a maioria continua a fazer-se com órgãos de cadáveres) não existe relação de consanguinidade com o receptor, a proporção mais alta desde que a prática deixou de ser ilegal. No ano passado, a quase totalidade das dádivas foram entre maridos e mulheres, mas também houve uma dádiva entre cunhados.
Companheira de António há oito anos, Tânia Machado diz que "é mais difícil aceitar do que doar". Por isso, desde o início disse ao companheiro, que é pasteleiro e tem 37 anos, que não o quer, que "o rim podia vir a fazer-lhe falta". "Ele nunca tinha feito análises e, por causa de mim, já foi todo picado. Nunca me perguntou se eu queria o rim. Ele é assim, mula", brinca a operadora de call center de 27 anos. Estão à espera de ser chamados para o transplante.
Até 2007, este tipo de dádivas eram proibidas em Portugal - apenas eram permitidas quando existia relação de parentesco até ao terceiro grau. A ideia era evitar o tráfico de órgãos, mas constatava-se que a interdição era, em muitos casos, um entrave ao transplante. Desde que a lei mudou, o número de transplantes de dadores vivos - a maioria são de rins mas também é possível doar partes do fígado - tem aumentado. A excepção foi o ano passado, em que houve um ligeiro decréscimo, mas enquanto em 2008 os dadores não consanguíneos representavam 29 por cento do total, no ano passado atingiram uma proporção recorde: dos 51 transplantes, 21 são deste tipo (41 por cento).
Constata-se que a lei abriu a porta sobretudo à dádiva entre maridos ou mulheres: dos 21 transplantes entre pares não consanguíneos realizados no ano passado, 20 envolveram pessoas com relações de conjugalidade; em 2009, dos 65 transplantes, 19 foram entre cônjuges (nove de marido para mulher, o mesmo número de esposa para marido e um em união de facto); e em 2008, o primeiro ano em que a lei foi aplicada, apenas sete dos 54 transplantes eram não consanguíneos, todos entre cônjuges (cerca de 13 por cento).
Ana não quis o rim do filho
Ana Cristina Pereira, professora de 43 anos, teve que esperar pela entrada em vigor da lei mas foi a primeira a ser transplantada com um rim do marido, ao abrigo da nova lei. Foi há dois anos e hoje tem uma vida normal. Poder ser o marido a dar-lhe o rim significou que pôde dizer que não à oferta do filho, que mal fez 18 anos insistia que queria dar o rim à mãe. "O meu filho não se calava." Ela, porém, nunca quis - só pensava que ele agora era jovem, mas que, "com 40 anos, mesmo uma pessoa normal começa a perder a função renal e com a esperança de vida a aumentar".
Em 2009, nas doações em que existem relações de sangue, sete filhos doaram os rins aos pais e 12 pais fizeram o mesmo aos filhos. Mas a maioria dos transplantes foram entre irmãos (26 do total de 65 transplantes) e houve mesmo um avô que doou a um neto. No ano anterior tinham sido cinco filhos a doar aos pais, 19 transplantes de pais para filhos, o mesmo número entre irmãos.
"A diálise não é vida"
Desde que Tânia descobriu, aos 25 anos, que sofre de insuficiência renal crónica, só sobrevive fazendo hemodiálise três vezes por semana, quatro horas por dia. "A diálise não é vida para ninguém", diz António, acrescentando que ele é "supersaudável". Dos dez mil portugueses que têm que fazer hemodiálise, cerca de 20 por cento estão em lista de espera para transplante - eram 2111 em 2009. Nos doentes que iniciaram tratamento por hemodiálise no ano passado, as principais causas da insuficiência renal eram a diabetes e a hipertensão arterial.
Para António, doar um rim a Tânia significa que ela não tem que ficar em lista de espera de transplante de um dador morto, embora esta fosse a melhor solução para os dois - sempre se guardava o rim de António Gonçalves para mais tarde, diz ela. O presidente da Sociedade Portuguesa de Transplantação, Fernando Macário, explica que os rins transplantados não duram para sempre, mas quando o dador é vivo sobrevivem mais tempo, um período de sobrevida que pode andar pelos 15 anos. Muitos transplantados têm que voltar à diálise, ou então são candidatos a novo transplante.Dos 573 transplantes renais realizados em 2010, 51 correspondem a órgãos obtidos de dadores vivos, o que representou uma subida de 8,9 por cento face ao ano anterior. Fernando Nolasco, presidente da Sociedade Portuguesa de Nefrologia, explica que quando os doentes não recorrem a dador vivo é porque não têm familiares que se voluntariam, por falta de informação ou por incompatibilidade. Mas diz que "o caminho é aumentar os dadores vivos". "Nos países nórdicos, os dadores vivos chegam a ser metade, é mais aceite, está mais divulgado." "[Quanto a quem doa], temos que ter a certeza que não vamos fazer mal ao dador." Mas, embora seja raro, a pessoa que fica só com um rim pode ter um dia de fazer diálise ao fim de 20, 30 ou 40 anos. "A percentagem é mínima, cerca de 0,1 por cento."
Via Público